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Somos a história que contamos sobre nós mesmos, nosso livro interior

Ninguém sobrevive psiquicamente sem ter uma história para contar sobre si mesmo e sobre os personagens mais importantes da própria vida

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Saul Steinberg/ilustração publicada originalmente na revista New Yorker em 1945
Ilustração coluna conceição
1 de 1 Ilustração coluna conceição - Foto: Saul Steinberg/ilustração publicada originalmente na revista New Yorker em 1945

Quantas vezes ouvimos alguém dizer: minha vida daria um livro. Ninguém sobrevive psiquicamente sem ter uma história para contar sobre si mesmo e sobre os personagens mais importantes da própria vida, sejam eles reais ou fictícios.

Há uma história mítica no leito do rio que nos conduz, resta identificar essa história e começar a contá-la e não necessariamente com a palavra escrita. Há muitos outros modos de escrever, até com uma panela e uma colher, um martelo e um prego, uma tesoura e um tecido. Cabe a cada um encontrar a matéria-prima com a qual escreverá um seu livro interno.

O divã é um desses lugares que nos dão a chance de começar a contar a própria história a si mesma. O início desse relato costuma ser um caos de eventos desconexos. Será no contar e recontar, pontuados pelo analista ou pelo terapeuta, que o livro íntimo de nós mesmos vai sendo constituído, frase após frase, parágrafo após parágrafo até que esteja razoavelmente coerente, um conto que tem uma melodia própria e única, exclusiva de cada um de nós.

Nesse contar e recontar, novos fatos vão se incorporando ao relato, novos modos de interpretar os acontecimentos, os excessos vão dando lugar ao que de fato vale a pena, uma certa afinação vai esmerilhando o nosso livro interno até ele se tornar o melhor de si mesmo, ou o menos pior.

Vale para a vida, vale para a literatura. Foi num dezembro, 19/12/1914, que Kafka escreveu em seu diário:

“No primeiro momento, o começo de todo conto é ridículo. Parece impossível que esse novo corpo, inutilmente sensível, como que mutilado e sem forma, possa manter-se vivo. Cada vez que se começa, esquece-se de que o conto, se sua existência é justificada, já traz em si sua forma perfeita, e que só cabe esperar vislumbrar nesse começo indeciso o seu visível mas, talvez, inevitável final”.

Dito de outro modo: nos cabe fazer o que tem de ser feito, mas no final das contas é Deus no comando.

Outro gigante da literatura, Ítalo Calvino, em “Seis propostas para o próximo milênio” conta que o primoroso desenhista Chuang-Tsê recebeu a incumbência de desenhar um caranguejo. O artista pediu um prazo de cinco anos e uma casa com doze criados, no que foi atendido. Passado esse tempo, Tsê disse que precisava de mais cinco anos. Ao final de uma década, finalmente o temperamental desenhista pegou um pincel e uma tela e num instante desenhou o caranguejo mais perfeito que já se tinha visto em todo o reino.

Na vida, às vezes acontece desse jeito: o caranguejo vai sendo desenhado silenciosamente dentro da gente e quando chega a hora ele se revela numa única (e inesperada) pincelada. Mas é preciso não atrapalhar o pincel, nem ficar cobrando coisas dele nem vigiando-o nem conferindo se está tudo bem com ele. Quanto mais livre o pincel, mais vívido o caranguejo. E ele passará a compor o livro invisível da vida de cada um de nós.

Feliz Natal.

(As histórias sobre Kafka e Ítalo Calvino foram retiradas de “Formas Breves”, do argentino Ricardo Piglia, Companhia das Letras).

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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