metropoles.com

Solidão que o vírus impõe a brasilienses é solidão sobre solidão

Na capital dos vazios e da sozinhez, o coronavírus nos insula como um pingo de terra no oceano. Demasiado desterro

atualizado

Compartilhar notícia

Google News - Metrópoles
Caio Ayres
Ilustração para coluna da Conceição Freitas: homem em frente à Catedral de Brasília
1 de 1 Ilustração para coluna da Conceição Freitas: homem em frente à Catedral de Brasília - Foto: Caio Ayres

Quando aqui cheguei, 35 anos atrás, a fama que corria era a de que Brasília era a capital do divórcio e da solidão. O quadradinho está, agora, em sétimo lugar no ranking das separações consensuais e judiciais, atrás de Rondônia, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Tocantins, Alagoas e Espírito Santo.

Se não é mais campeã de separações, o quadrado cristalizou a solidão, superpôs solidão sobre solidão. O vírus em forma de bolinha-porco-espinho reforça o que em nós, brasilienses, é quase atávico: a separação contínua dos corpos a uma distância superior ao metro e meio recomendado pelos protocolos sanitários.

Os candangos já nasceram porco-espinho. E pelo menos um meme já deu conta disso: um homem aliviado porque em Brasília ninguém cumprimenta, pega na mão, dá beijinho, dá abraço.

É trágico, mas é cômico. É real, mas surreal. Exceto no transporte coletivo, na Rodoviária, em algumas feiras, nos shoppings em fins de semana, nas festas e nos espetáculos, nós, brasilienses, percorremos o dia sem chegar perto de muita gente ao mesmo tempo. Até no cinema, a maior parte das sessões nos mantêm a uma distância superior à que faz o coronavírus cair no chão antes de nos alcançar.

Com o tempo, o brasiliense vai perdendo o jeito com gente. Qualquer aproximação a menos de um metro é um acontecimento, um assédio, uma invasão, tudo vai depender de como o sujeito lida com o outro.

Quando o poeta inglês John Donne (1572/1631) disse que nenhum homem é uma ilha, Brasília não existia nem em sonho. Somos um arquipélago de 3 milhões de ilhotas e quanto mais ricas as ilhas, mais isoladas umas das outras.

A solidão que a pandemia impõe aos brasilienses é solidão dobrada, posto que temos a nossa solitude atávica. E sobre as duas solidões, há aquela (inescapável) da condição humana. Não importa o quanto a gente esperneie, renegue, disfarce, ela está lá, coladinha na gente nem que seja só nos vinte minutos antes de pegar no sono. Ou na solidão cortante e atormentada da insônia. Ou naquela solidão eterna enquanto se espera o resultado de um exame com suspeita de doença grave. Ou a da morte diante de nós. Ou da dor que não pode ser nomeada. Não nos faltam solidões.

São tantas que uma a mais não faz muita diferença. E a de agora é por um motivo grave e ao mesmo tempo nobre, pois nos conduz de volta à humanidade quase esquecida. É um vírus que convoca a solidariedade — ele nos diz: ou nos protegemos uns aos outros ou nos matamos uns aos outros ou adoecemos uns com os outros.

Na capital dos vazios e das solidões, o vírus nos insula como um pires de terra no oceano. Demasiada solidão. Robson Crusoé tendo de inventar um Sexta-Feira.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

Quais assuntos você deseja receber?

Ícone de sino para notificações

Parece que seu browser não está permitindo notificações. Siga os passos a baixo para habilitá-las:

1.

Ícone de ajustes do navegador

Mais opções no Google Chrome

2.

Ícone de configurações

Configurações

3.

Configurações do site

4.

Ícone de sino para notificações

Notificações

5.

Ícone de alternância ligado para notificações

Os sites podem pedir para enviar notificações

metropoles.comNotícias Gerais

Você quer ficar por dentro das notícias mais importantes e receber notificações em tempo real?