metropoles.com

Saint-Hilaire, o francês que passou por aqui 200 anos atrás

Depois que acabou o ouro de Goiás, restaram a miséria, a beleza do cerrado e a marmelada que dom Pedro II comia no café da manhã

atualizado

Compartilhar notícia

Google News - Metrópoles
Igo Estrela/Metrópoles
Chapada dos Veadeiros
1 de 1 Chapada dos Veadeiros - Foto: Igo Estrela/Metrópoles

Quando acabou o ouro de Santa Luzia, a Luziânia de hoje, restou o marmelo. Com ele, se fazia e se faz até hoje marmeladas vendidas em caixinhas de madeira. Fazia-se também, e já não mais, marmelos cristalizados. Conta-se que as marmeladas chegaram à mesa de dom Pedro II. Boa parte da produção, até hoje, sai do Quilombo do Mesquita.

Os marmelos de Santa Luzia estão nos relatos de Auguste de Saint-Hilaire, o viajante francês que percorreu o interior do Brasil na primeira metade do século 19. Neste 2019, completam-se 200 anos de sua passagem por Goiás.

Havia muita miséria nos arredores das terras que, século e meio depois, viriam a ser o Distrito Federal. Com o fim do ciclo do ouro, os negros viviam na indigência. Preferiam continuar procurando o quase nada que restava no garimpo do Córrego de Santa Luzia a trabalhar nas fazendas em troca de mantimentos.

Era maio de 1819, comecinho da seca. Nas longas e extenuantes viagens a pé ou a cavalo, o francês parava para dormir em ranchos cobertos de palha e “aberto de todos os lados”, como descreve em Viagem à Província de Goiás (a edição que consulto é da Livraria Itatiaia/Editora da Universidade de São Paulo, 1975).

A palavra “cerrado” ainda não designava o bioma que nos cerca. Saint-Hilaire foi um dos primeiros a descrever a estranha vegetação: “Após subir a serra por alguns instantes, achei-me num planalto imenso, deserto e bastante regular, coberto ora de pastagens naturais salpicadas de árvores raquíticas, ora exclusivamente de gramíneas, de algumas outras ervas e de subarbustos”.

Giovanna Bembom/Metrópoles

 

As plantas “ressecadas pelo ardor do sol, tinham uma coloração amarela ou cinza, que afligia o olhar”. Uma paisagem, porém, aplacava a aflição do francês: “Unicamente o elegante e altivo buriti, elevando-se do fundo dos brejos, desfazia essa ilusão”. Na época da seca, Saint-Hilaire soube, os animais selvagens se escondem em grotas durante o dia – além da sombra, encontram capim ainda fresco.

As poucas casinhas nos sítios eram de taipa, cobertas de palha, sem janelas e com portas feitas “com folhas de buriti dispostas verticalmente e ligadas umas às outras com cipó”. Lembravam treliças, escreveu o botânico. Léguas e mais léguas separavam os casebres. As terras não eram cultivadas nem se criava boi.

Mas havia cavalhada em Santa Luzia, à época um arraial de não mais de 4 mil habitantes. Era a festa mais importante da cidade. Com um pó branco, traçava-se um grande quadrado na praça, em volta do qual se acomodava o público. “Os cavaleiros vestiam o uniforme da milícia. Traziam na cabeça um capacete de papelão e seus cavalos estavam enfeitados de fitas. Eles se limitaram a galopar pela praça em várias direções, enquanto outros cavaleiros, mascarados e fantasiados de mil maneiras diferentes, faziam mesmices e trejeitos semelhantes aos dos palhaços de circo.”

Achando o espetáculo “bastante monótono”, o francês aproveitou a ocasião para conversar com o vigário João Teixeira Alvarez, de quem já havia tido notícia. Gostou tanto do padre que adiou a ida para Meia Ponte, a Pirenópolis de hoje. “Poderia ter-me posto logo a caminho, mas havia tanto tempo que eu não tinha oportunidade de conversar com um homem culto, que resolvi prolongar minha estada em Santa Luzia, a fim de usufruir da companhia do vigário”.

Alvarez sabia latim, francês, italiano e espanhol. Conhecia a literatura francesa e tinha “uma seleta biblioteca com várias centenas de volumes, o que no país era uma raridade”. Além de instruído, “era bondoso e amável”. Naquele tempo, só os ricos se casavam. Os pobres se juntavam. Graças ao padre Alvarez, escreve Saint-Hilaire, os habitantes de Santa Luzia “tinham bons costumes e o concubinato ali era menos comum”.

Na Pirenópolis que ainda se chamava Meia Ponte, o francês encontrou um cenário de miséria absoluta: “… não se consegue dar um passo no arraial sem esbarrar com mendigos. Vários deles, atacados de elefantíase, necessitam evidentemente de assistência”.

Botânico e naturalista, se deixou encantar: “Foi nesse trecho elevado [perto de Luziânia] que vi pela primeira vez, entre as plantas dos cerrados e campos limpos, a monocotiledônea arborescente (…) a singular Vellozia, que se bifurca várias vezes e cujos ramos, recobertos de escamas, terminam numa bela flor envolta num tufo de folhas lineares, flexíveis como os ramos dos salgueiros e que se agitam à mais leve brisa.” Era a canela-de-ema.

Duzentos anos depois, um grupo de pesquisadores refez o percurso de Saint-Hilaire por Goiás e a viagem, as rodas de conversas e os saraus nas cidades visitadas vão resultar num livro que está sendo organizado pela pesquisadora Lenora Barbo.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

Quais assuntos você deseja receber?

Ícone de sino para notificações

Parece que seu browser não está permitindo notificações. Siga os passos a baixo para habilitá-las:

1.

Ícone de ajustes do navegador

Mais opções no Google Chrome

2.

Ícone de configurações

Configurações

3.

Configurações do site

4.

Ícone de sino para notificações

Notificações

5.

Ícone de alternância ligado para notificações

Os sites podem pedir para enviar notificações

metropoles.comNotícias Gerais

Você quer ficar por dentro das notícias mais importantes e receber notificações em tempo real?