Raymond Frajmund, o candango que foi prisioneiro em Auschwitz
O polonês que veio para Brasília em 1960 me ensinou que é possível ser doce e alegre mesmo depois de passar por horrores como o holocausto
atualizado
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O sorriso doce, o sotaque estrangeiro, os dentes miúdos, a pele rosa e a alegria de menino jamais fariam acreditar que o candango Raymond Frajmund viveu os horrores que viveu. O número 133.381 era a memória inscrita no antebraço esquerdo: tinha passado pelo campo de Auschwitz, que o mundo inteiro lembrou essa semana, nos 75 anos de libertação dos prisioneiros do holocausto nazista.
Depois de dois anos de trabalhos forçados e comida escassa, era preciso algo muito forte, novo, um território estrangeiro, ainda não contaminado pelo mal de que o humano é capaz. Como um planeta outro, e essa dimensão o jovem Raymond Frajmund encontrou na recém-inaugurada Brasília.
Chegou aqui em 1º de junho de 1960, 50 dias depois da inauguração da cidade e 15 anos após conseguir escapar da Marcha da Morte, a fuga imposta pelos alemães a milhões de judeus antes da chegada das tropas russas. Raymond estava entre os quatro mil prisioneiros retirados para uma longa caminhada rumo a outro campo de concentração, sob um frio de 20 graus abaixo de zero. Só teriam um pão para comer, durasse a fuga o tempo que durasse.
O jovem polonês de 17 anos decidiu que iria aproveitar a marcha para fugir. “Queria morrer ou ser livre.” Quando passavam por um povoado abandonado, escondeu-se num barraco. Deitou e dormiu por um tempo que nunca soube contar. Quando acordou, viu que não estava sozinho. Outros prisioneiros haviam fugido. Dias depois, uma tropa de soldados russos encontrou os fugitivos — Raymond, 1,70m, pesava 35 kg — e os deixou partir.
Sete anos depois, livre, fisicamente recuperado, emocionalmente atordoado, o jovem Raymond assistia a um concerto de música erudita em Bruxelas, cidade onde morava com os pais, que haviam conseguido fugir do cerco aos judeus, no começo da guerra. O brasileiro Eleazar de Carvalho (1919-1996) era o maestro naquela noite. Quando viu o homem regendo a orquestra e balançando o corpo, com um à vontade que desconhecia. Raymond pressentiu que talvez houvesse um lugar no mundo onde ainda era possível dançar sem o peso da guerra.
Soube, então, que na América do Sul existia um país chamado Brasil, território continental habitado por uma gente mestiça, nascida da combinação de negros, índios e portugueses, e que era alegre como o maestro Eleazar de Carvalho. Um ano depois, em 1953, Raymond desembarcava no novo mundo. “Eu estava puto da vida com a Europa, a Europa que nos massacrou.”
Quando Brasília foi inaugurada, Raymond já era fotógrafo do jornal O Estado de S. Paulo. Seu editor, o imprescindível Cláudio Abramo, precisava mandar alguém para a nova capital, mas ninguém queria vir. O polonês se ofereceu para ficar uns dois meses. Nunca mais saiu.
Uma semana depois, fez uma das fotos mais emblemáticas da presença humana na nova capital: a de homens vestidos de fraque no meio do cerrado (imagem em destaque). Eram os embaixadores da Noruega e da Austrália e dois secretários indo para a inauguração de uma embaixada. A foto famosa mereceu o Prêmio Esso de 1960 e integra o acervo do Itamaraty. O fotógrafo faz parte da história da cidade.
Raymond Frajmund nunca mais saiu de Brasília. Foi tomado pela força da paisagem e dos homens que construíam a cidade. “Tive a impressão de ter achado um porto seguro, um lugar tranquilo, onde eu podia pensar em criar uma família.” E criou. Morreu em 2016, aos 89 anos.
Conversei com ele longamente numa manhã de 2010 para uma série de matérias publicadas pelo Correio Braziliense para os 50 anos de Brasília. Raymond me fez acreditar que é possível sobreviver com afeto, dignidade e alegria mesmo depois de ter vivido os horrores do holocausto, o do nazismo ou qualquer outro.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.