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Quando tudo aconteceu, eu era a menina mais rica e feliz da Terra

Meu corpo rodopiou como se estivesse dando cambalhotas. A única coisa que vi foi o meio-fio. Eu sabia que o pai estava morto

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Arquivo IBGE
Foto preto e branca mostra rodovia Belém-Brasília com dois carros - Metrópoles
1 de 1 Foto preto e branca mostra rodovia Belém-Brasília com dois carros - Metrópoles - Foto: Arquivo IBGE

Chovia chuva fininha, só se via o asfalto úmido. Até tudo acontecer, eu flutuava no paraíso, o pai ao volante, a mãe ao lado, o irmão atrás comigo. Toda a minha riqueza estava dentro daquele carro e quem nos conduzia era o homem mais poderoso que já habitara a Terra.

O carro era novo, um Opala, e tinha um rádio que conseguia sintonizar uma emissora, talvez a Rádio Nacional da Amazônia. A última música que ouvi foi “um gato preto cruzou a estrada…”, megassucesso dos Secos & Molhados.

A Belém-Brasília já estava asfaltada, uma língua reta e infinita ainda margeada de floresta e de currutelas que surgiam à beira da estrada. À esquerda, um arco-íris, soberanamente arqueado, as sete cores estalando contra as nuvens e me prometendo potes de ouro que eu não queria e nem precisava. Tudo estava ali: o pai, a mãe e o irmão. Éramos quatro. Tinha sido sempre assim, salvo em algumas visitas esporádicas a parentes distantes em outras cidades. Meu tesouro cabia num carro.

– Que é que isso, Isaías?, foi a última coisa que ouvi. Era a voz da mãe estranhando a derrapagem.

Meu corpo rodopiou como se estivesse dando cambalhotas dentro de uma bola de ar. A única coisa que vi foi o meio-fio como se ele também tivesse brincando no pula-pula, mas era o globo-da-morte.

Devo ter desmaiado. Acordei no banco traseiro do carro, ouvindo a voz do meu irmão, 6 anos. Olhei pelo vidro e ele estava inteirinho, sem um arranhão, de short e chinelo, andando no barranco de pedrinhas. Ao lado dele, sentada, minha mãe vestida de sangue. Não vi nem ouvi o pai.

De dentro do carro capotado, eu tive certeza de que ele estava morto. Soube por mim mesma, como se o sopro da morte tivesse me contado a terrível notícia.

– Por favor, Deus, por favor, eu sei que ele morreu. Vou sair deste carro mas não me deixe ver ele, eu não quero ver ele, por favor, por favor.

Desci do carro pelo lado do matagal, catei a pasta 007 dele, onde estavam documentos e dinheiro. E subi o barranco. Nenhum sangue escorria de mim, nenhuma dor eu sentia, nem desespero, nada, não sentia nada.

Não vi o corpo do pai.

Cheguei à Belém-Brasília, asfalto novo, clareando da chuva recente. Segui pelo meio da pista, sobre a linha amarela, não sei dizer por quanto tempo, talvez nem cinco minutos. Vi, no alto da estrada, um ponto preto se movendo, era um pau-de-arara roncando preguiçosamente. Parou na beira do barranco e dele desceu um montoeiro de gente apressada, gritando: Acidente! Tem gente ferida!

Eu sabia que o pai estava morto, nunca saberei como eu sabia, mas eu sabia. Quando entrei no carro que nos levaria ao hospital, a mãe ensanguentada e o irmão inteirinho, estava claro pra mim que dali para frente seríamos só nós três, uma mãe jovem, uma filha adolescente e um filho criança. O pai ficou no barranco.

Passados 50 anos, dos quatro só ficamos eu, a estrada e o rio depois da estrada – de onde vim, pra onde sempre volto.

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