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Pra que discutir com madame: a visita de Simone e Sartre a Brasília

Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre não entenderam Brasília nem o surrealista Brasil que dá nó até na cabeça de filósofo existencialista

atualizado

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Acervo Agência Nacional
Imagem preto e branco de Jean-Paul Sartre, Juscelino Kubitschek e Simone de Beauvoir - Metrópoles
1 de 1 Imagem preto e branco de Jean-Paul Sartre, Juscelino Kubitschek e Simone de Beauvoir - Metrópoles - Foto: Acervo Agência Nacional

Nesses dias em que o Plano Piloto ferveu por conta da avidez da especulação imobiliária (ela, sempre ela), vale lembrar o que escreveu Simone de Beauvoir depois da visita que ela e Jean-Paul Sartre fizeram a Brasília em setembro de 1960.

Juscelino os recebeu no Palácio da Alvorada, Simone bem francesinha com vestido floral de manga comprida e um lenço envolvendo os cabelos. O anfitrião quis saber o que os filósofos estavam achando do Brasil, ao que Sartre respondeu com cerimoniosa diplomacia: “Está próximo o dia em que o Brasil desempenhará papel preponderante no concerto das nações”.

Nada diretamente sobre Brasília, mas deixa estar. De volta à França, Simone amolou a faca sobre a visita à nova capital do Brasil: “Guardo a impressão de ter visto nascer um monstro cujo coração e cujos pulmões funcionam artificialmente graças a processos de custo mirabolantes. Em todo caso, se Brasília sobreviver, a especulação vai se apoderar-se dela. Os terremos que beiram o lago, e que devia, na concepção de Lucio Costa, permanecer propriedade pública, já começaram a ser entregues pela municipalidade a compradores particulares. Está aí mais uma das contradições brasileiras: a cidade número um desse país capitalista foi planejada por arquitetos ligados ao socialismo. Eles fizeram belas obras e construíram um grande sonho, mas não podiam ganhar”.

Em carta ao escritor Nelson Algren, com quem mantinha um romance, a filósofa do segundo sexo não teve dó nem piedade: “Estou em Brasília, a mais demente lucubração que o cérebro humano jamais concebeu”. Depois de relatar o assombro acachapante com a capital recém-inaugurada, Simone concluiu, sarcástica: “Vou deixar Brasília com o maior prazer – esta cidade jamais terá alma, coração, carne ou sangue”.

Ciceroneados por Jorge Amado e Zélia Gatai, o casal existencialista percorreu, entre agosto e outubro de 1960, 20 cidades brasileiras, do Rio de Janeiro a Salvador, de Recife a Belém e Manaus, de Olinda a Ouro Preto. O propósito era conhecer “um país subdesenvolvido, semicolonizado, onde as forças revolucionárias estavam ainda, talvez por longo tempo, acorrentadas”, escreveu depois Simone. Vivia-se, naqueles dias, o auge da ilusão de estender os ideais revolucionários cubanos para a América Latina.

Imagem preto e branco de Simone, Oscar Niemeyer, Sartre, Jorge Amado e James Amado
Simone de Beauvoir, Oscar Niemeyer, Sartre, Jorge Amado e James Amado

A visita dos megafamosos filósofos ao Brasil estremeceu as colunas literárias dos jornais brasileiros da época. Todo dia havia nem que fosse uma notinha sobre o paradeiro das duas celebridades francesas – a pré-história do jornalismo “Caetano estacionou no Leblon”.

A mais incrível de todas as matérias que encontrei merece ser reproduzida. Foi publicada na primeira página do “Diário de Pernambuco”, edição de 8 de outubro de 1960. Sartre e Simone haviam chegado ao Recife às nove da noite para, no dia seguinte, embarcar de volta à França. Não quiseram falar com os jornalistas.

Uma hora e meia depois, já no hotel, o telefone tocou no quarto existencialista. Segue aqui o trecho final da matéria (publicada como se fosse um grande feito jornalístico trocar duas palavras com a filósofa do feminismo):

“– Alô, é a escritora Simone de Beauvoir?

– Oui.

– Madame, sou jornalista dos Associados. Um colega meu tentou, há uma hora, conseguir declarações suas e de seu marido. Principalmente as impressões da sua recente viagem, na qualidade de hóspede oficial do governo.

– Senhor, desculpe mas estamos tellement fatigues da nossa viagem. Partimos amanhã de manhã, e não será possível atendê-lo.

– Madame, desculpe incomodá-la. Mas desejaria falar ao seu marido. O nosso metier de jornalista nos obriga a isso, por insistência do nosso jornal, que deseja publicar as suas impressões da recente viagem.

– C’est impossible, m’sier, c’est impossible.

– Madame, eu gostaria de insistir num ponto: conhecer as impressões do escritor Jean-Paul Sartre sobre a crítica que Léo Sauvage acaba de escrever em torno do livro “Ouragan sur le sucre” (reportagens de Sartre em Cuba), num dos últimos números do “Figaro Literário”.

Madame desligou o telefone.”

Madame e monsieur voltaram para a França sem entender o Brasil. “Estranho país surrealista. Quando se pensa ter entendido, logo nos damos conta de que cometemos erro, de que o certo é diferente, um disparate”, Sartre teria dito a Jorge Amado, segundo escreveu Josélia Aguiar na biografia do baiano.

Estranho país surrealista que dá nó até em cabeça de filósofo existencialista.

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