Pequeno ensaio de um dicionário amoroso de Brasília
São estranhas as palavras que nomeiam os lugares do quadradinho. São modernas mas também são tão antigas que não têm idade
atualizado
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Quando o moderno chegou trazendo denominações esquisitas para um bairro (SAAN, SRTS, SHIGS) ou mais palatáveis mas não menos estranhas (Plano Piloto, Eixo, Estrutural, Plataforma), não levou em conta que no quadradinho havia lugares nomeados com palavras antigas que traziam em si as marcas da história desse cadinho de sertão goiano.
Um dicionário amoroso dos topônimos de Brasília seria, então, uma mistura de siglas impronunciáveis, palavras tiradas da arquitetura e do urbanismo e outras que sobreviveram, incólumes, às imposições modernas.
Há uma toponímia bem-humorada em Brasília que contrasta com a aridez da sopa de letrinhas — Café sem Troco, por exemplo. Antes era um cruzamento de vias nos confins a sudeste do quadrado, quase chegando na divisa com Minas e Goiás. Nesse entroncamento, havia um quiosque onde se vendia café, biscoitos duros e bolachas moles. Conta-se que o dono do estabelecimento nunca tinha troco e a fama foi num crescendo até dar nome ao lugar. Hoje, é um bairro do Paranoá e mantém o nome, Café sem Troco.
Do outro lado do quadradinho, existe a Comunidade de Queima-Lençol, que faz parte da Fercal, a RA de número 31. Há algumas versões para a origem do nome, uma delas a de que uma doença contagiosa matou tanta gente que foi preciso queimar todos os lençóis para tentar barrar a peste. A outra, um pouco mais confusa, associa a queima dos lençóis à passagem da Coluna Prestes. Como se sabe, o movimento político-militar liderado por Luis Carlos Prestes passou pelas terras que, 50 anos depois, viriam a ser o novo Distrito Federal.
Do lado moderno, Plano Piloto é o nome mais importante da toponímia de Brasília. De tão incrustado na alma brasiliense, já perdeu o sentido original, plano-piloto, substantivo comum. O edital do concurso de 1957 buscava escolher um “plano-piloto” para a nova capital, a partir do qual ela se desenvolveria. Acabou se tornando nome próprio, sem o hífen — ou apenas Plano, como é tratado por quem mora fora da área tombada.
Em Brasília, Eixo não é apenas nome de linha reta ou nome de uma peça de carro. É nome da mais importante avenida da cidade, o Eixo Monumental.
O aumentativo, Eixão, é o apelido de uma via expressa (Eixo Rodoviário) e Eixinho de Cima e Eixinho de Baixo, nomes afetuosos das vias marginais.
Tesourinha é o diminutivo que designa uma brincadeira viária de entontecer motorista.
Estrutural designa, na origem, um tipo de via, a principal de um sistema viário. Em Brasília, é nome próprio. A Via Estrutural é também a BR-070, um das rodovias radiais do Brasil. É o outro nome da Estrada Parque Ceilândia (EPCL) e o nome da cidade mais teimosa do DF.
Estrada parque é o prenome de muitas das vias que ligam o Plano às satélites. Originalmente, é o nome de vias que cortam parques, um dos modos de ajardinar a vida urbana.
Cidade-satélite é o nome antigo das Regiões Administrativas, as RAs, uma sigla que já virou nome (pronuncia-se Erre-A).
E os córregos? Estão neles as mais antigas toponímias desse território que tem a idade mais antiga do planeta: “Pisamos, no Planalto, [em] alguns dos mais antigos sedimentos de Gaia, da ordem de um a dois bilhões de anos”, escreveu Paulo Bertran.
Alguns dos córregos dessa terra tão ancestral: Capão do Brejo, Derradeiro Poço, Jiboia, Passaginha, Guela de Viúva (assim mesmo, guela), Córrego da Mentira, Capão dos Meninos e o Córrego Não dá caminho, afluente do Rio São Bartolomeu.
Nessa cidade racionalista, filha das utopias de prancheta, os pontos cardeais viraram nome próprio: Asa Sul, Asa Norte, Sudoeste, Noroeste. Até um adjetivo da geometria: Octogonal, bairro do Sudoeste.
A arquitetura e o urbanismo estão para o brasiliense como os movimentos das marés estão para as cidades litorâneas. Há uma intimidade doméstica para com a linguagem um tanto sofisticada da arte de planejar espaços para o homem viver e andar.
Escala, gabarito, fachada, urbs, civita, pilotis, maquis são termos que transitam nos bares com o à vontade dos paletós cor de vinho dos garçons do Beirute. Com a sua falsa modéstia e inteira compreensão do próprio valor, Lucio Costa se considerava um “maquis do urbanismo” ao apresentar sua ideia de plano-piloto de Brasília. (Maquis é um termo francês que designa os que participaram da resistência à ocupação alemã da França na 2ª Guerra. A luta contra o nazismo está, portanto, na certidão de nascimento de Brasília).
Brasília é moderna e antiga, forçosamente moderna, naturalmente antiga. Os nome que designam os lugares da capital expressam a passagem até hoje inconclusa de um tempo ancestral para um tempo presente. Ainda estamos no meio do caminho, com recuos graves, como os de agora. Mas temos a cidade, prova de que não somos tão pequenos como hoje parecemos.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.