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Objeto de desejo do ódio, a moça não perde a pose nem a poesia

Mesmo na assustadora noite de 13/11 e naquele tenebroso 8/1, a deusa não cedeu nem um grão de granito

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Crédito: Luis Humberto/ reprodução de A luz e a fúria
Foto colorida de crianças na Estátua da Justiça
1 de 1 Foto colorida de crianças na Estátua da Justiça - Foto: Crédito: Luis Humberto/ reprodução de A luz e a fúria

Uma deusa de granito foi escolhida como objeto de desejo do ódio – por que será? Talvez por sua altivez serena, sua beleza plácida, seu gênero nitidamente feminino, seu peito nu, seus olhos cobertos. Está quase ao alcance da mão, não fosse a vigilância constante e é ao mesmo
tempo inalcançável em sua existência pétrea. Emanações demasiadas para os perturbados de espírito.

Chama-se A Justiça, a moça de granito, disso todos sabem. Granito vem de grão, rocha que resultou do lento resfriamento da lava vulcânica nas profundezas da Terra. As primeiras civilizações logo escolheram o granito para esculpir os túmulos dos faraós em seu desejo de eternidade. Sabiam de sua resistência: é uma pedra que suporta serenamente as intempéries e os eventuais ataques.

A moça de granito é uma obra do mineiro Alfredo Ceschiatti (1918-1989) – escultor quase onipresente nos principais monumentos de Oscar Niemeyer em Brasília. Ele está, para citar alguns, no Palácio da Alvorada (As Banhistas), na Catedral (Os Quatro Evangelistas e Os Anjos),
no Itamaraty (As Gêmeas).

Antes de ser vigiada 24h por dia, a escultura de granito existia em inteira liberdade e era um desafio lúdico para as crianças. Seus 3, 3 metros de altura, seu pedestal em dois degraus, seu colo convidativo, seus braços definidos, convocavam os pequenos visitantes a uma escalada alegremente democrática. Era a selfie perfeita quando nem existia selfie.

Lá pelos anos 1970/1980, o fotógrafo-arquiteto Luis Humberto (1934-2021) fez uma foto que passou a circular nas redes sociais logo depois dos acontecimentos explosivos de 13/11. A imagem lavou a alma democrática do brasiliense. Cinco garotos escalam a escultura de Ceschiatti, como quem se apropria ludicamente do que lhe pertence, e reduzindo a fria escala monumental em escala humana, coisa que o fotógrafo Luis Humberto fez muito bem.

A foto inédita ficou guardada durante décadas até que foi publicada em A luz e a fúria, perfil de Luis Humberto feito por Nahima Maciel (Coleção Brasilienses, 03, 2008). No texto, provocado por uma pergunta, LH responde que a fotografia e a poesia têm a mesma capacidade de síntese. “É como a música. Você tem uma linguagem que permite uma síntese que reduz o conteúdo e o torna perceptível para mobilizar a sensibilidade. É a síntese de um momento. Às vezes de uma história”.

A moça de pedra que brincava com os cinco meninos é uma divindade, Têmis. Na cosmogonia grega, ela era filha de Gaia, a deusa Terra, e uma das mulheres de Zeus, o todo-poderoso deus grego. Sábia, conselheira divina, era uma espécie de oráculo a quem se recorria para resolver questões sobre o modo de vida no planeta e, dentro disso, sobre preceitos morais.

A nova capital do país carecia de uma deusa desse porte. A pedido de Oscar Niemeyer, Alfredo Ceschiatti transpôs para o granito uma Justiça conectada com seu tempo e lugar. É uma deusa moderna, fortemente feminina, coberta por um tecido solto da cintura para baixo, pés descalços à mostra. Está sentada e tem os olhos vendados (desse modo, segundo a tradição romana, se assegura a imparcialidade nos julgamentos). Não empunha a espada, deixa-a deitada sobre o colo.

A deusa moderna não perde a pose. Mesmo na assustadora noite de 13/11 e naquele tenebroso 8/1, a deusa não cedeu nem um grão de granito. E Luis Humberto reapareceu para nos lembrar que a fotografia pode ser a síntese poética da história, com a capacidade
milagrosa de renovar os espíritos.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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