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O rio Araguaia, as estrelas, a arraia e um Brasil de chinelo de dedo

Quando escurece em Tocantis, rio, praia, gaivota, peixinho, tudo deixa de existir, tão soberanas são as estrelas e a Via Láctea

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Iury Santana/Divulgação
Rio Araguaia, em Goiás
1 de 1 Rio Araguaia, em Goiás - Foto: Iury Santana/Divulgação

A arraia me olhou com o olho amarelo e eu gelei. Estávamos só nós duas na imensidão de uma praia do Araguaia, o rio que corta Goiás, Mato Grosso, Tocantins e Pará e que nos meses de seca levanta imensos desertos de areia.

Desde que havia chegado ao acampamento, foi o que mais ouvi: cuidado com a arraia. Queria muito vê-la, andava quilômetros na borda da praia procurando alguma coisa achatada, redonda, com rabo fino, semovente e que se esconde debaixo da areia mais escura, quase cor de lama. Na manhã de minha partida, ela surgiu. Parecia ter cavado um buraco na areia, deitado dentro dele e ficado à minha espera.

Voltei tremendo de medo e alegria. Havia olhado no olho de uma arraia.

O rio dos índios caiapós e carajás ainda guarda lonjuras de difícil acesso, onde quase não chega sinal de internet e onde por horas o único barulho é o das gaivotas fisgando peixinho no raso das águas.

O Araguaia tem uma veleidade: a cada ano ele revela praias diferentes, ilhas tão grandes que dá para andar mais de hora no sentido leste ou oeste até chegar à beira do rio. Quando escurece, rio, praia, gaivota, peixinho, tudo deixa de existir, tão soberano é o manto de estrelas e a Via Láctea, estrada leitosa nos avisando o tanto que somos quase nada.

Araguacema é o nome de uma das cidadezinhas banhadas pelo Araguaia. Pequena, antiga, teria sido uma penitenciária no Império. Não havia uma cadeia – a distância, o isolamento, a mata, o rio e os índios eram a muralha invisível dos presos.

Nesse pedaço do Tocantins quase chegando ao Pará, as cidades são uma Pirenópolis que não foi tomada pelo turismo. Casario da arquitetura vernacular brasileira, de duas águas, uma porta e duas janelas, sem muro nem cerca e muitas delas com uma barra caiada de cor mais escura na parte inferior e outra cor, mais clara, até o telhado.

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O ônibus que me levou de Brasília até quase perto de Araguacema faz a linha Carazinho/São Félix do Xingu, do Rio Grande do Sul ao Pará, um percurso de 3.284 km, dois dias e meio de viagem. Atravessa seis estados e os pequenos Brasis que se cruzam, se reconhecem e sobrevivem ao largo das capitais.

Brasil que anda de ônibus, que transporta farinha, laranja, peixe seco, rapadura, panelas, ferramentas, em sacos de aniagem, sacos plásticos, sacolas, caixas de papelão que se misturam às malas industrializadas. A senhora Renato Aragão ficaria escandalizada: nas pequenas rodoviárias do Brasil profundo chinelo de dedo é o que mais se vê – inclusive nessa que aqui escreve.

Um Brasil mestiço que continua fazendo progressiva no cabelo (cabeleira afro ainda é coisa de cidade grande), que não mais disfarça certa indiferença, certa irritação, certa intolerância, com uma freqüência que não havia visto nesses tantos anos de estrada. Como se todos fôssemos suspeitos uns para os outros.

Só o rio, as estrelas, as gaivotas, os peixinhos, a arraia de olho amarelo e as casinhas sem muro continuam os mesmos, pelo menos por enquanto. E meus amigos goianos que acampam no Araguaia há quatro gerações.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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