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O poeta revela o arquiteto: Drummond conta quem era Lucio Costa

Os dois trabalharam juntos por 12 anos. Conversavam pouco, mas conheciam-se e respeitavam-se de um jeito que quase não se vê mais

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1 de 1 lucio costa drummond - Foto: Arte sobre foto

Lucio Costa é uma pessoa física na minha vida, embora eu o tenha visto apenas uma vez, numa rápida entrevista, quando voltou a Brasília em meados dos anos 1980, depois de longo afastamento. Tenho por ele afeto de filha, de fã, de namorada, de devota. Quando contei isso a Maria Elisa Costa, semana passada, ela comentou: “É porque ele era muito verdadeiro”.

Relendo uma crônica de Carlos Drummond de Andrade sobre Lucio Costa, compreendi melhor a razão de tanto afeto. Há um escondido nele que me encanta, um estar na vida sem fazer muito alarde e ao mesmo tempo com uma independência e uma honestidade intelectual que me fortalecem.

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Os dois, poeta e arquiteto, trabalharam juntos por 12 anos no mesmo corredor do então Sphan, o Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, no Rio. E “corredor” não é força de expressão, era um espaço comprido e estreito: de um lado, estante de livros; de outro, uma divisão de madeira.

Quase não conversavam, mas percebiam-se e admiravam-se. A mesa de Drummond era um desfile de moças que apareciam para conhecê-lo. Lucio Costa ficava mais ao fundo e era muito visitado também, mas por servidores do Patrimônio – nada se decidia sem que ele fosse ouvido.

Um dia, o arquiteto mostrou algo ao poeta:

“Dia ‘histórico’ para mim foi aquele em que Lucio me apareceu, discreto como sempre, botando em minha mesa uma folha de papel rabiscada às pressas, com palavras e um esboço de desenho que aparentemente pouco significavam. Peguei a folha e tive entre os dedos nada menos do que a cidade de Brasília, inexistente e completa, como um germe contém e resume a vida de um homem, uma árvore, uma civilização. A primeira noção de uma cidade diferente de todas as outras até então imaginadas mostrava-se ali, nos traços rudimentares de uma cruz (ou um avião) plantada na terra ou alçando voo. O plano-piloto de Lucio dizia bem pouco para um leigo habituado a ver cidades em funcionamento e não no papel, um papel nada luxuoso como o dos grandes escritórios de arquitetura. Falei em rabisco e pulsava. Sem entender, eu sentia a vibração das formas implícitas naquela folha de papel que mudava a história do Governo do Brasil e, em certa escala, a vida dos brasileiros. Comovi-me. Lucio também devia estar comovido por ter achado a solução quase mágica para o problema de conceber uma Capital de País em termos absolutamente originais”.

Poucos dias depois, Lucio pediu a Drummond que revisasse o texto do Relatório do Plano Piloto de Brasília, que venceria os outros 25 concorrentes. Maria Elisa diz que o poeta apenas corrigiu a ortografia antiga que o pai usava.

Na crônica que me fez entender a razão funda de tanta devoção a Lucio Costa, Drummond desnuda com sensibilidade de poeta quem era aquele homem calado e atento:

“Parecia o mais vago dos homens; entretanto, em dada ocasião deu-me um conselho que não segui e que, se fosse observador atento, me pouparia uma decepção política. Na realidade, era e é um observador atento e sagaz do mundo e da vida brasileira em particular. Se tudo parece escapar-lhe, talvez o mais correto seja dizer que nada lhe escapa; se não dá mostras constantes dessa capacidade de observação e análise – uma análise quase sempre original, resultante do seu gosto, cultura e independência de espírito, e não de padrões estabelecidos de crítica – isto se deve à sua inclinação natural para a penumbra, o bastidor, a ocultação de si mesmo. Lucio argumenta, julga, define-se mas desinteressa-se da ação prática [até] que (e isto sucede com frequência) um detalhe das coisas lhe choque a sensibilidade, e ele investe contra a anomalia. No mais, que o deixem viver sossegado, reflexivo, quase uma sombra, na retaguarda dos que brilham, e adoram brilhar com luz própria ou de empréstimo. Este nobre e humilde senhor não quer que o aborreçam. Será que o estou aborrecendo com estas lembranças do corredor onde trabalhávamos juntos e calados?”

Essa crônica de Drummond foi publicada no Jornal do Brasil, em 3 de março de 1982, quando o arquiteto tinha acabado de completar 80 anos. Viveria mais 16 e, por certo, não se aborreceu com o ex-colega de repartição.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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