O menino dos dedos perdidos que virou o primeiro cronista de Brasília
Clemente Luz escrevia textos curtos e líricos sobre os primeiros movimentos de gente e de terra no canteiro de obras da futura capital
atualizado
Compartilhar notícia
Numa fazenda chamada Quilombo, no distrito de Bicas do Meio, nasceu o primeiro cronista de Brasília. Desde 1958, os candangos ouviam crônicas que ecoavam nos alto-falantes da Cidade Livre. O mineiro Clemente Luz escrevia textos curtos e líricos sobre os primeiros movimentos de gente e de terra no canteiro de obras da futura capital do Brasil. As crônicas diárias eram transmitidas pela Rádio Nacional de Brasília e algumas delas foram publicadas em “Invenção da cidade” e “Minivida”. Com sorte, ainda dá pra achar um exemplar em sebos virtuais. O cronista deixou também alguns livros infantis.
Menino, Clemente brincava de descascar cana-de-açúcar quando a faca decepou três dedos da mão esquerda. A mutilação fez os pais decidirem mandar o filho para a escola, já que ele não poderia mais pegar no cabo da enxada. “Daí em diante, todos os sacrifícios, todos os apelos foram feitos em nome dos meus dedos perdidos”, conta Clemente na orelha de “Minivida”.
Sem dedos, Clemente tomou gosto pela leitura. “Era o meio mais fácil de fugir das tarefas pesadas, como as de buscar burro no pasto, tratar dos porcos e, eventualmente, servir de candeeiro de carro de boi”. Só terminou o ensino fundamental, o ginásio de sua época, aos 22 anos, em Belo Horizonte. Estava convencido de que a literatura era “a única válvula para romper na vida”.
Rompeu quando conseguiu trabalho num jornal de BH e, romperia firmemente, quando veio para Brasília e passou a escrever crônicas sobre o cotidiano dos candangos. Conta-se que ele punha uma mesa na calçada, na Cidade Livre, para ouvir os relatos dos operários da nova capital. Ouvia também o canto dos trabalhadores nas madrugadas. Cantar era um modo de disfarçar o cansaço, alegrar a peleja, brincar com a saudade:
“Eram os nortistas, com os baiões ligeiros e sentimentais. Eram os mineiros, com as modinhas picantes e sentimentais também. Como fundo musical poderoso, o ruído dos martelos, das serras, dos motores.”
Embora uma tragédia contínua sustentasse a utopia, acidentes de trabalho, mortes, violência policial, condições desumanas de moradia, havia um suceder de epifanias:
“Não sei se vocês já viram. Mas eu vi, muitas vezes, a lua, como uma grande bola de sangue, surgir no nascente, no mesmo instante em que, no poente, como outra bola incandescente, o sol começa a se pôr. A terra fica vermelha, o planalto se cobre de uma luz misturada de sol e lua, e os corpos parecem que ficam transparentes.”
Cronista da paisagem e do cotidiano, Clemente Luz encantou o piauiense/brasiliense José Gomes, estudante de história da UnB. Depois de ler algumas crônicas apresentadas por um professor, José decidiu dedicar o mestrado ao cronista número 1. Desde então, passou a ler e reler as crônicas e os minicontos publicados nos dois livros do autor. “Ele observava o que era invisível para a maioria dos que relatavam a construção da cidade, o trabalhador, as crianças, as mulheres, as condições de vida dos candangos.”
O pesquisador descobre um lirismo triste, compassivo, crítico, como este: “A cidade está pronta. Bela na sua concepção urbanística e arquitetônica, aí está, plantada no chão e no tempo, para a eternidade. Mas não é mais nossa. Nem é muito humana, embora os ares se encham dos cheiros e das fumaças dos fogões domésticos, do choro das crianças, do lamento dos corações solitários, da gargalhada histérica dos novos-ricos e dos boêmios inveterados, do ruído rangente dos freios de veículos que mãos alucinadas dirigem. As salas vazias dos palácios e blocos ministeriais se povoam lentamente de estranhos, aos olhos longínquos e tristes dos candangos, que vão tendo a entrada barrada na portaria”.
Se, para Lucio Costa, o Plano Piloto era uma borboleta; e para boa parte das gentes, um avião; para Clemente Luz, era um louva-a-deus. E temia, dada a fragilidade de suas asas, que ele pudesse decolar para um voo destruidor.
O cronista percebeu que a utopia estava destinada a poucos.
Clemente Luz morreu em 1999, aos 79 anos, numa casa modesta na Ceilândia.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.