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O fervor de Raduan, 40 anos depois de ter abandonado a literatura

Quando anunciou, há 40 anos, que estava abandonando a arte de escrever, Raduan provocou um abalo sísmico na bolha literária brasileira

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1 de 1 Imagem colorida do escritor escritor Raduan Nassar - Metrópoles - Foto: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO CONTEÚDO

Na esteira das muitas desilusões deste quase fim de ano, me lembrei do que Raduan Nassar disse a respeito da condição humana: “… eu acho que o homem é uma obra acabada. Pode estar diferente hoje, adquirir conhecimento, criar as maquininhas, voar pelo espaço, mas eu acho que ele é uma obra acabada. Eu não aposto no aprimoramento da espécie, eu não aposto nisso”. (Folha de S. Paulo, 30/05/95).

Algum tempo depois, provocado por um grupo de ilustríssimos entrevistadores, ele espichou um pouco mais o assunto: “Que eu saiba, a espécie humana continua igualzinha ao que era antes, cada indivíduo fazendo o caminho de sempre, que vai de santo a capeta. O que acontece nesse percurso é o nosso patrimônio”.

E o que acontece nesse percurso? Perguntam os entrevistadores, professores e críticos literários consagrados.

Raduan responde: “Sacanagem, inveja, generosidade, amor, violência, ódio, sensualidade, interesse, mesquinhez, bondade, egoísmo, fé, angústia, medo, ambição, ciúme, prepotência, humilhação, insegurança, mentira e por aí afora, mas sobretudo passionalidade, além do eterno espanto com a existência. É esse o patrimônio da espécie”.

A obra magistral de Raduan grita essas mesmas coisas o tempo todo. É um grito colérico, exasperado, tão vivo quanto um tremor de terra, tão bem escrito quanto uma sinfonia eletrizante. Nada fica no lugar dentro da gente diante de Lavoura Arcaica e Um Copo de Cólera. Cada frase é um estremecimento em si mesmo.

Quando anunciou, há 40 anos, que estava abandonando a sacrossanta arte de escrever, Raduan provocou um abalo sísmico na bolha literária brasileira. Não foi pequeno o espanto diante de decisão tão radical – como se ele estivesse desprezando solenemente o território dos deuses da literatura, no qual ele mesmo era uma das entidades míticas. E estava mesmo.

O incrível, o fantástico dessa escolha é que Raduan apenas trocou a natureza da palavra: deixou de escrever com o alfabeto e passou a escrever com o corpo. As três décadas seguintes foram de lida com a terra na Fazenda Lagoa do Sino, em Buri, no sudoeste paulista, até que em 2012, aos 77 anos, doou parte da propriedade para um funcionário da fazenda e outra parte para a Universidade de São Carlos, com uma condição: a fazenda deveria ter cursos ligados às ciências da natureza com foco na agricultura familiar.

Sem saber exatamente o que estava fazendo — e quem é que sabe? –, Raduan fez um simples e grandioso gesto de fé na humanidade, nada a ver com bravata messiânica. A dedicação ao cultivo da terra por tanto tempo e, mais tarde, a doação da fazenda com propósitos definidos – a universidade a serviço da agricultura familiar — são gestos de crença num depois afirmativo, porque a desilusão pura e seca é insuportável mesmo em Raduan (observe as fotos dele, há um sorriso doce e sutil que resiste à cólera).

Menino criado em fazenda, filho de dona Chafika, “criadora de mão cheia” de galinhas e perus, Raduan devolveu à terra o que a terra lhe deu de ímpeto para seguir escrevendo a vida. Na entrevista aos bambambãs da teoria literária (Cadernos de Literatura, 2006), o entrevistado se lembra da performance caricata de um amigo escritor e tradutor: “Hamilton Trevisan dizia que continuamos na vida adulta a recitar ‘Batatinha quando nasce’, esperando por aplausos. Ele falava isso com muita graça, imitando a menina que puxa as pontas da saia para os lados e curvando o corpo pra frente com falsa modéstia ao agradecer os aplausos”.

O que vale, diz Raduan, é você ser sujeito do seu trabalho, seja ele qual for. É você estar inteiramente ligado na sua batatinha quando nasce, seja ela um esplendor de literatura ou um esplendor de espiga de milho.

Consagrado como um dos mais importantes escritores brasileiros de todos os tempos, com apenas um romance, uma novela e três ou quatro contos, o Prêmio Camões 2016 completa 89 anos no próximo 27 de novembro. Salve Raduan, o escritor que cultivou palavras e cultivou a terra com igual fervor.

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