O dia em que a literatura salvou o adolescente Guimarães Rosa
Guimarães Rosa, o escritor-diplomata, estava no Itamaraty quando recebeu a visita do filósofo e crítico literário Benedito Nunes
atualizado
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Guimarães Rosa estava em seu gabinete no Itamaraty, quando a sede do Ministério das Relações Exteriores ainda ocupava um imponente edifício de fachada neoclássica no Rio de Janeiro. Era fevereiro de 1967. O escritor-diplomata recebeu uma visita vinda de Belém do Pará, o filósofo e crítico literário Benedito Nunes.
Rosa, um homem alto, corpulento, 59 anos. Nunes, baixo, miúdo, 38 anos, o visitante quase 20 anos mais novo que o visitado. O mineiro seguia adiando a cerimônia de posse na Academia Brasileira de Letras, como se temesse a imortalidade. O paraense já tinha publicado ensaios sobre a obra de um dos mais importantes autores brasileiros de todos os tempos.
“Surpreendeu-me sua avantajada estatura, porte sólido e saudável, ombros largos de boiadeiro, em contraste com a mansidão da voz. Mal me sentara ao lado da mesa que meu interlocutor ocupava, posta sobre um estrado, numa cadeira de onde o divisava sempre de baixo para cima, levantou-se, abriu a gaveta superior de um arquivo burocrático e entregou-me grosso volume encadernado e datilografado que dela retirou.”
Eram os originais de Tutameia – Terceiras Estórias, publicado pouco depois daquele encontro, meses antes de Rosa morrer.
Benedito Nunes quis logo saber por que “terceiras estórias” se ele havia publicado apenas as Primeiras Estórias. (No qual, há dois contos inspirados no assombro de um menino ao visitar uma cidade em construção, Brasília).
O homem corpulento fez charme:
– Ah! Isso é um mistério que não posso revelar ainda.
Então, pediu a Benedito Nunes que lesse um dos quatro prefácios que já havia feito para as 40 estórias de Tutameia.
– Leia e me dê sua opinião.
Entregou o volume datilografado para o visitante e abriu Herzog, de Saul Bellow, lançado no começo dos anos 1960. Com esse gesto, relatou Nunes mais tarde, Rosa queria deixá-lo à vontade na leitura dos inéditos. Não deu certo: cada um ficou fazendo de conta que estava totalmente concentrado na literatura em mão.
“Ambos estávamos desatentos”, relembrou o paraense em A Rosa o que é de Rosa (Difel, 2013).
Na verdade, olhavam-se de banda – ou “de soslaio”, como preferiu escrever Nunes.
Nesse desajeitado encontro de literaturas e filosofias, o anfitrião pediu um cafezinho à secretária. E dividiu, pela metade, uma única bolacha Maria. (Haveria mais de uma? Não se sabe). “… juntos comemos em comunhão”, escreveu Nunes, reforçando a imagem religiosa de uma hóstia partida ao meio.
Rosa então quebrou o clima quase místico e pegou o primeiro cigarro. “Segurava-o de maneira imponente, num gesto largo e meditado, entre o polegar e o indicador (segundo vim a saber, é assim que se fuma no interior de Minas). Aproveitei a pausa para revigorar o ânimo”, descreveu, mais tarde, o ensaísta paraense.
Enquanto o escritor pitava, o filósofo tentava controlar o nervosismo para conseguir dizer o que achara do prefácio. Como já tinha lido algumas das estórias de Tutameia no jornal Pulso, onde haviam sido previamente publicadas, Benedito Nunes pode dar sua opinião com mais propriedade.
Disse a Rosa que o prefácio Aletria e hermenêutica defendia original convergência entre o imaginário e o reflexivo, o teórico e o poético. E como os prefácios não podem ser separados das estórias que preludiam, Tutameia conseguira realizar, ao juntá-los, um empreendimento tanto literário quanto filosófico. Literatura e filosofia, dois territórios que tanto o mineiro quanto o paraense desbravavam, cada um no seu quadrado.
No relato em que rememora esse encontro que parece ter sido o único entre Guimarães Rosa e um dos seus mais acurados estudiosos, a certa altura o escritor diz uma coisa que me deixou trêmula tanto quanto, imagino, Benedito Nunes ficou tenso naquele encontro de fevereiro de 1967. A coisa que Rosa disse ao visitante:
“Escrevi Grande sertão como um ato de minha vida, para aprender a viver. Era como se fosse o meu testamento. As minhas preocupações, os meus conflitos, ali se refletem e se resolvem. Até os 14 anos eu não sabia viver. Um dia deitei-me na cama com a intenção de não me levantar mais. Até que fui me encontrando nas coisas, nas leituras.”
Nove meses depois desse encontro, Guimarães Rosa morreu de infarto, três dias depois da cerimônia que o imortalizou na Academia Brasileira de Letras. Benedito Nunes morreu em 2011, aos 81 anos. E eu fiquei vidrada no menino de 14 anos que um dia pensou em nunca mais se levantar da cama, na literatura que o pôs de pé novamente e na bolacha Maria partida ao meio.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.