O desespero de um desempregado e de um médico em tempos extremos
Depois de 15 dias confinada, percorri o Plano, Taguatinga e Guará, cada uma se comportando de um jeito. E ouvi as angústias de um médico
atualizado
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Ouço um homem na minha rua de 12 casas, no lado mais pobre do Guará 2, de lotes que, nos anos 1990, Roriz destinou a carroceiros e a servidores públicos de classe média-baixa. Cheguei à quadra de enxerida. Comprei a casa de terceiros, porque a primeira moradora, expulsa pelo perverso fenômeno da gentrificação, já tinha ido morar em lugar mais distante. Pra quem não sabe e não tem obrigação de saber, gentrificação é o nome que se dá aos que são expulsos de lugares melhores e mais perto do centro para a periferia das cidades dada a especulação imobiliária.
Como dizia, ouço um homem. “Tô sem trabalho, sem dinheiro, o que você quer?” Fala ao celular, caminhando na rua estreita, de não mais de quatro metros de largura. Os vizinhos somos tão vizinhos que ouvimos a conversa da casa da frente, da casa ao lado, de todos os que passam.
A sexta-feira 3 de abril, que termina com 422 comprovadamente infectados no DF, foi de assombro. Depois de 15 dias de clausura, tive de sair para resolver emergências. As quatro horas que passei entre a Asa Sul, Taguatinga e o Guará bateram no meu peito como uma incrível aventura, dolorosa, assombrosa, angustiante e viva. Viva!
Quanto mais longe do Plano Piloto, mais a vida parece seguir como se pandemia não houvesse. Pontos de ônibus cheios, gente conversando muito perto umas das outras, raras delas usando máscara. Só as lojas fechadas denunciam que algo estranho acontece.
Saí cedo do Guará para pegar uma receita de medicamento controlado para minha mãe, 87 anos, que mora em um abrigo em Goiânia. Depois de dias tentando achar um médico que pudesse me passar a receita de tarja preta, consegui, finalmente, marcar uma consulta com um endocrinologista que me atende há alguns anos.
É um homem de meia idade, meio caboclo, meio negro, meio índio, compenetrado e atento. Também atendia minha mãe. O plano de saúde não cobria a consulta. Paguei para a secretária e expliquei ao médico que precisava mandar o medicamento para minha mãe, sob pena de ela ter aflições que, se prolongadas, se transformariam em alucinações.
Ele entendeu a urgência. Aquele homem portador de conhecimentos misteriosos sobre o corpo humano estava perplexo (usava máscara, não usava luvas). Quando lhe perguntei sobre a pandemia, começou a contar do dia em que conheceu o mar. Foi mais ou menos assim:
“Fiquei olhando a maré subindo e descendo. Ouvia no rádio o horário e batia direitinho com o movimento das ondas. Fiquei extasiado com o movimento das águas, pensando como que um pescador, um barqueiro, conseguia dominar as ondas. De onde vinha aquele conhecimento que não estava escrito.”
O médico prosseguiu em reminiscências muito antigas. Relembrou a viagem de avião de volta da cidade à beira-mar para o lugar onde morava, nas profundezas do Brasil:
“O avião subiu, atravessou nuvens carregadas de chuva e chegou ao céu azul. Quando tudo parecia sereno, o bicho começou a tremer, o carrinho da aeromoça ia pra frente e pra trás. O comandante avisou que era uma área de turbulência, mas parecia que o avião ia se partir ao meio. De repente apareceram rosários e rezas de todo lado…”
Como se a morte fosse iminente, eu disse.
Ele continuou a falar, sereno, mas angustiado, estranha combinação de quem lida com os limites da vida.
Médico de serviço público (também), disse que ainda não tinha tido coragem de ver se Bolsonaro havia assinado o decreto que cortava ao meio o salário dos servidores. Contou que soube que talvez os médicos tenham de se cadastrar num registro geral do governo para que possam ser convocados para onde se façam necessários, imprescindíveis.
“Médico é um sujeito muito vaidoso, gosta de ostentar. Tenho mais de 30 anos de medicina, estou cansado de ver médico recém-contratado comprando uma Mercedes já no primeiro mês. Prestação de três mil reais e sem nenhum dinheiro guardado para as emergências. Estão todos desesperados. Sou de outro tempo, não tenho essas vaidades, mas e esses que estão cheios de dívidas?” Os consultórios estão vazios.
Estamos todos no avião em turbulência. Ou rezamos ou olhamos quem reza ou estamos indo e voltando como o carrinho da aeromoça.
É esse querer mais do que cabe à nossa pobre condição humana que está nos derrotando. É um vírus sacana, esse. Nos põe à prova: e aí, é essa vida que você quer mesmo? Esse viver para ostentar? Pra mostrar que tem, que pode, que sabe, que é?
Estamos todos levando bordoadas da Covid-19, que deve estar rindo muito de cada um de nós. Quem você pensa que é, pobre humano cheio de egoísmo, de empáfia, de tecnologia, de soberba ignorância, estufado de vaidade, desprovido de empatia, pagando R$ 3 mil por mês por uma Mercedes e reclamando do salário mínimo que paga para a empregada ou do ônibus caro da diarista. Olhe-se no espelho, quem sabe ainda dá tempo?
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.