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O corona parece que não vai à praia

Em dois dias de praia, não vi nenhuma máscara nem ouvi nenhuma conversa sobre a pandemia, nem uma mísera piadinha

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Praia do Rio de Janeiro ao fundo e catador de latinhas
1 de 1 Praia do Rio de Janeiro ao fundo e catador de latinhas - Foto: null

Nem parece que o Rio de Janeiro é o segundo estado com maior número de coronavírus nem que as aulas e os eventos públicos foram cancelados. Em dois dias de praia, não vi nenhuma máscara nem ouvi nenhuma conversa sobre a pandemia, nem uma mísera piadinha. Até onde minha vista alcançou, o vírus parecia virtual.

O jovem casal estrangeiro, de pele cor de leite, faz mímica para pedir um guarda-sol e um coco; ao lado, o homem igualmente branco, espanhol tudo indica, pede uma água. São servidos sem nenhum gesto de apreensão. O vendedor de mate e biscoito Globo batuca um sambinha no tonel de metal. Um homem negro, de bigode branco, limpa o suor e puxa o fôlego antes de continuar oferecendo queijo coalho assado, dois homens negros bem jovens rolam na areia, numa briga que parece ser por espaço de aluguel de cadeiras.

— A Lady Gaga e a Beyoncé, diz o vendedor de canga para duas moças que sorriem felizes com a comparação.

O mar é monumental, as montanhas também, mas a escala do Rio de Janeiro é a humana. E se todos passam a menos de um metro um do outro nas calçadas, por que não se vê máscaras nem se ouve nenhuma das histórias que rolam nas redes antevendo o fim do mundo? Será que o carioca já se acostumou ao fim dos tempos, tantas as tragédias, tão cotidianos os desesperos?

Não sei, mas é muito bom andar pelas ruas do Rio antes de o mundo acabar. Se acabar, estarei ao lado de gente, coladinha em meus iguais.

Entro num boteco pé-sujo, um dos raros que ainda vejo em Ipanema, e pergunto o que tem pra comer. O homem não perde a piada nem acredita que possa perder a cliente:

— Depois do garçom, tem costela, carne assada, bife e carré.

Aceito o carré. E ele serve o PF: feijão preto, arroz, macarrão, farofa, tomate e alface.

O carré vem num pratinho separado. O garçom, outro, comenta com uma ironia quase ingênua:

— É ao molho de vinho tinto.

O macarrão tem gosto de estragado. Deixo de lado. O carré está muito frito, mas as cebolas estão perfeitas.
Sento diante de um balcão estreito, azulejado com ladrilhos azuis, rejunte encardido, tudo tão imperfeito e verdadeiro.

Ouço as conversas, nada, nada sobre o coronavírus. A tevê ligada fala de crimes, a moça do caixa comenta que o vizinho foi atropelado por uma bicicleta, clientes e funcionários todos a menos de um metro uns dos outros.

Tenho a sensação de viver num mundo bipartido: o do coronavírus e o das ruas e das praias do Rio de Janeiro, pelo menos daquelas por onde andei nos últimos três dias.

Na praia, duas moças sozinhas leem livros. Bem cedo, os cães brincam de correr atrás da bola, na água de ondinhas. O número de ambulantes parece ter aumentado bastante, na proporção quase que de dois por um, dois banhistas para um vendedor.

Penso nas ruas vazias de cidades italianas e nas vias implacáveis e sempre solitárias de Brasília (com ou sem coronavírus). O Rio que ainda funciona parece alheio ao pandemônio, como se num eterno Carnaval cotidiano: o acarajé ao lado do cachorro-quente ao lado dos biquínis ao lado da esfirra, na praça misturada de todo tipo de gente — de adolescentes saindo da escola, operários em obras, cadeirantes, craqueiros, mulheres descoladas, porteiros fofoqueiros — pra ficar perfeito, só faltou o Caetano estacionando em Ipanema.

Enquanto espera o bolinho fritar, a vendedora de acarajé fala ao celular:
— O pastor disse que vai orar por ela pra ver se ela toma juízo, eu já não aguento mais.

A moça de 35 anos, talvez, diz ao filho de 4 anos, não mais:

— Todo mundo julga a gente o tempo inteiro.

Abaixa a cabeça e chora. Há uma garota de 6/7 anos ao lado. Os três sofrem, embora haja sol e mar.

A moça da barraca grita para o moço da barraca ao lado:

— Não discuto com homem. Meu homem discute por mim.

Descubro, na saída da hospedagem Airbnb, que desde minha chegada fui orientada a usar o elevador de serviço. Havia um social que, aos olhos do porteiro (negro), não me cabia.

Um homem muito magro, só de bermuda, dorme na calçada, sobre um pano e com uma mochila servindo de travesseiro. Ao lado, alguém deixou dois croissants num saco plástico transparente. Duas horas depois, o homem continuava dormindo e os croissaints, intactos, esperando por ele.

Tudo indica que amanhã vai ter praia.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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