No rastro dos avôs de Lucio Costa, encontrei a mim mesma
Como disse Carlos Marcelo, biógrafo de Renato Russo, escrever a biografia de alguém é também de algum modo escrever a própria biografia
atualizado
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Sigo procurando Lucio Costa e sabendo desde já que, ao mesmo tempo, sigo procurando a mim mesma. Como disse Carlos Marcelo, biógrafo de Renato Russo, escrever a biografia de alguém é também de algum modo escrever a própria biografia. Penso que é preciso ter isso muito claro pra não forçar a mão em certas tintas da pintura do personagem. É grande a tentação de preencher os vazios do próprio retrato.
Fazia meses que eu procurava informações sobre um dos avós de Lucio Costa e não encontrava nada, além do nome, Ignácio Loyola da Costa, e da cidade de nascimento e de morte. Coisa fácil de se achar nos sites de genealogia (alguns deles, ávidos caça-níqueis). Nem o próprio Lucio, em Registro de Uma Vivência, parecia ter referências mais precisas. Foi quando os deuses da biografia me levaram, casualmente, ao anúncio de morte de Ignácio, publicado num jornal muito antigo. Foi uma das minhas maiores alegrias dos últimos tempos. Era como se encontrasse fios perdidos de minha própria história.
Sobre o outro avô, Marçal Gonçalves Ferreira, há até um livro no qual consta um pequeno perfil do antigo alfaiate que fabricava e vendia roupas para seringueiros, caixeiro-viajante que subia e descia o Rio Negro em meados do século XIX. Era português, o Marçal (e tinha bigodes, como o neto viria a ter).
Como Marçal chegou a Belém, num tempo sem aviões, sem estradas e com poucas embarcações? A pergunta me levou à imigração portuguesa no Pará, uma das mais intensas dos colonizadores para o Brasil. Só perde para o Rio de Janeiro, claro. Entre os anos 1800 e 1850, 1.339 almas lusitanas embarcaram rumo à província paraense, uma delas viria a ser o avô de um dos mais relevantes arquitetos e urbanistas brasileiros. E esse número de migrantes quintuplicou na segunda metade do século XIX.
A presença portuguesa no Pará está fortemente marcada nos nomes de alguns municípios paraenses. Alter do Chão, Santarém, Bragança, Óbidos, Barcarena, Vigia, Alenquer, Soure são algumas delas. Acredita-se que muitos desses topônimos foram escolhidos bem antes do século XIX, e não por mera nostalgia da terra natal. Foi um modo de mandar um recado às investidas holandesas, francesas e inglesas, sempre querendo um quinhão das terras lusas.
Como quem diz: aqui já tem dono.
Indo atrás de Marçal cheguei à minha infância na Estrada Nova, periferia de Belém. Fui criada numa microcolônia portuguesa. A casa de madeira onde eu morava pertencia a um português,
seu Inocêncio. Mas eu passava boa parte do dia do outro lado da rua, no armazém de secos e molhados do Seu Manoel e no andar de cima, onde ele vivia com a mulher e os cinco filhos.
Cresci ouvindo conversas tão apressadas quanto o toc-toc dos tamancos no assoalho de madeira. O sotaque português é minha mais remota cantiga de ninar.
Nessa toada, sigo procurando Lucio Costa e encontrando a minha própria história, embora ele eu tenhamos nascido em classes sociais muito distintas. Em comum, uma teia amazônica, brasileira, colonial e moderna.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.