Navios de cruzeiro, um não-lugar onde flutuam falsas ilusões
Vale observar que um não-lugar pra mim pode ser um lugar pra você e vice-versa
atualizado
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Três vezes mais pesados que o Titanic, muito andares mais altos, 54 metros mais compridos e com capacidade de receber mais que o dobro de pessoas (cerca de 7 mil entre passageiros e tripulantes), os navios de cruzeiro que estão costeando o Brasil são um espetáculo de monstruosidade metálica no mar. “Como um troço desse tamanho flutua?”, me perguntou o intrigado motorista de aplicativo. Vista de fora, é uma nave imponente, monumental e misteriosa.
Tamanho, como se sabe, não é documento. A bordo, um navio de cruzeiro é asséptico como um não-lugar, termo que o etnólogo e antropólogo francês Marc Augé (1935-2023) escolheu para designar espaços públicos anonimamente habitados por multidões de passantes, sem que haja uma identificação de pertencimento, apenas de uso e consumo.
Os shoppings e os supermercados são exemplos de não-lugares. Uma feira popular, uma igreja antiga, uma pracinha de comunidade, um monumento arquitetônico são exemplos de lugares afetivos, que fazem parte da história de cada um.
Vale observar que um não-lugar pra mim pode ser um lugar pra você e vice-versa. Os mais jovens ocuparam com tanta veemência os shoppings que essas máquinas gigantescas de consumo já fazem parte da memória afetiva dos millennials.
Hipermercados e shoppings no mundo (salvo as exceções de praxe) parecem saídos de uma mesma fábrica: galpões insípidos ocupando um quarteirão inteiro e outro tanto de estacionamento. Os navios também têm arquitetura própria, se é que se pode chamar de arquitetura as instalações de uso comum das estruturas gigantescas que atracam em grandes cidades portuárias.
Nos navios de cruzeiro de última geração, quase nada sobrou da imagem do Titanic em seus instantes de glória ou mesmo das imagens de outros navios cenográficos de passageiros: cadeiras de descanso no convés, restaurantes de fino trato, cabines com as escotilhas redondinhas, o comandante estufado em sua farda branca, o manche de madeira com hastes pontiagudas. Sobrou, é verdade, a longa buzina anunciando que o navio vai zarpar.
Os monstros marinhos mais modernos são uma mistura de shopping e ressort flutuantes, com uma forte demão de excessos.O atrium de quatro ou mais andares exageradamente decorado com lustres, escadas e corrimãos puro brilho inevitavelmente lembra as alegorias luxuosas dos carros alegóricos das escolas de samba do Rio de Janeiro.
Piscinas, toboáguas, restaurantes, bares, academia, spa, salão de beleza, cassino, boliche, brinquedoteca compõem a sequência de atrações mundanas ilhadas no meio do nada. O mar está ali fora, muito maior do que todos os continentes juntos, mas parece inexistir, quase anulado pela monstruosidade indiferente do transatlântico.
Desde sempre, navios são lugares cheios de referências na história da humanidade. Lembram exploradores, desbravadores, cientistas. Navios alcançaram novos mundos, conduzem migrantes, movem tropas, transportaram degredados, traficaram escravizados. Navios são armas de guerra, exportam e importam riquezas legais e ilegais. Navios são condutores de civilização (e de barbárie também).
As embarcações estão na história do homo sapiens há mais de dez mil anos. Boa parte da aventura humana, desde a África até se espalhar pelo mundo, se deve à engenhosidade humana em construir transportes flutuantes.
Foi num navio, vindo de Nova York, no final de 1956, que Lucio Costa começou a esboçar o que seria a nova capital do Brasil. Não há imagem desse acontecimento, mas dá pra imaginar um homem de 50 e poucos anos, magro, de farto bigode e farta discrição, sentado numa espreguiçadeira náutica, olhos lançados ao Atlântico, deixando vir à consciência as primeiras ideias do que poderia ser um plano-piloto (com hífen, no sentido de projeto preliminar) da nova capital do Brasil.
Naqueles anos 1950, o mundo queria esquecer as duas guerras mundiais recentes. O Brasil transbordava num oceano de criatividade, alegria e descoberta de si mesmo. Os navios eram menos ostentatórios, eram verdadeiramente luxuosos. Havia uma medida, uma referência, uma certa contenção, não há mais. Tudo virou apenas mais um modo de ganhar muito dinheiro à custa do desejo irrecusável de ser ou parecer rico e feliz e no meio do mar, como um deus esvaziado de sentido.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.