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Não existe um céu de Brasília. São infinitos os céus que nos protegem

Brasília pediu licença ao céu para ocupar a terra. As escalas de Lucio Costa, todas elas, reverenciam tudo o que paira sobre nós

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Céu de Brasília
1 de 1 Céu de Brasília - Foto: Daniel Ferreira/Metrópoles

A caminho de Samambaia, domingo de manhã, fui devastada por uma miragem tipicamente brasiliense. Uma massa monstruosa de nuvens cinzentas flutuava sobre 360 graus de horizonte. Seria assustador, não fosse o que vi nas bordas do céu devorador. Em todo o contorno desse círculo de assombro, surgia uma claridade solar. A tempestade anunciada tinha um depois. E era reluzente, faiscante o anel onde o céu e a terra se tocavam por inteiro.

A tormenta que me cobria não escondia o remanso que me esperava.

Não existe um céu de Brasília. O que temos sobre nossas cabeças é uma infinidade de firmamentos. Exceto nos azuis desérticos dos meses de seca e nos veranicos eventuais, nenhum céu é igual ao outro nesta cidade de peito aberto para o infinito. 

De um mesmo lugar, desdobra-se meia dúzia de mantos celestes – de chuva, de sol, de nuvens; incandescentes, plácidos, cinzentos, dourados, prateados, alaranjados, amarelados, azulados; muito próximos, muito distantes. Céus ameaçadores, apaziguadores, céus de arco-íris fincando potes de ouro a leste e a oeste, raios de sol anunciando a presença do divino.

Por isso, os brasilienses adoram brincar de céu. De perguntar se está chovendo aqui, porque ali não está chovendo. De ver a cortina de chuva diante do nariz, de atravessar a chuva e sair do outro lado, de sol-e-chuva-casamento-de-viúva. De parar o carro na rodovia para fotografar o pôr do sol, o nascer do sol, o nascer da lua, a lua cheia, o sol nascendo de um lado e a lua nascendo de outro. O céu queimando de febre, tremendo de estrelas, chorando nuvens.

(O céu de Brasília ri dos terraplanistas quando os aviões Mirage deixam um rastro côncavo de fumaça porque, afinal, estão contornando uma superfície arredondada).

Brasília pediu licença ao céu para ocupar a terra. As escalas de Lucio Costa, todas elas, reverenciam tudo o que paira sobre nós. “Construções com espaço calculado para as nuvens”, como escreveu Clarice.

Parece haver uma inspiração pré-colombiana em Lucio e Oscar – mesmo os edifícios monumentais são compactos, como se cultuassem os deuses do firmamento.

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Menino, Niemeyer desenhava com o dedo indicador apontado para o céu. Adulto, arquiteto, vinha de carro do Rio de Janeiro para o canteiro de obras de Brasília observando o formato das nuvens.

Lucio começou a pensar em Brasília dentro de um navio a caminho de Nova York. Entre ele e a cidade que inventava só havia céu e mar. (“O céu é o mar de Brasília” é a sua frase mais célebre). Talvez venham daí os vazios – céus e mares deitados sobre o Cerrado.

Sempre que estou pra morrer, corro pra debaixo do céu de Brasília. Por mais morta que eu esteja, ele me acorda pra eu viver mais um pouco. Pra minha sorte e pra azar da minha morte, meu caminho de ida e volta de todo dia abre-se para o leste (na ida) e para o oeste (na volta). É o céu me dizendo que está tudo bem e se não está vai ficar. E se não ficar, fica o céu dentro de mim, até que eu morra de vez. Quem sabe terei o céu da eternidade?

Por isso, não importa o que aconteça dentro dos palácios, sempre teremos o céu que nos protege. Até onde sabemos, ele não está à venda.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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