Não é fácil ser brasiliense: as tentações e os perigos são muitos
A maioria absoluta de quem mora em Brasília nunca viu um presidente nem entrou nos palácios. Mas, quando entra, é grande a ilusão
atualizado
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A camiseta anuncia: “Sou brasiliense e nunca vi um presidente”. Nem eu nem a maioria de nós, os 3 milhões de moradores do quadradinho. Exceto os que trabalham no Palácio do Planalto ou no Palácio da Alvorada, ou meia dúzia de gente mais próxima, por dever de ofício ou por bajulação autorizada, exceto esses, ninguém vê os presidentes atravessando a faixa de pedestre ou comprando pão na padaria.
“Você já viu um presidente?” é a segunda pergunta que brasiliense mais ouve fora de Brasília. A primeira é, de modo direto ou indireto, se também somos corruptos. É o preço de viver na capital do país, como se Brasília não estivesse espalhada por todos os estados, municípios, sedes de governos, assembleias legislativas, câmaras de vereadores, tribunais e fóruns. (Já repararam que as sedes do Poder Judiciário são, em geral, construções enormes, espelhadas, cafonas e dispendiosas?)
Brasília está em todo o Brasil – quando o sentido que se dá ao topônimo é o de sinônimo de falcatrua, ladroagem, corrupção, fraude e todas as ilicitudes ligadas ao poder.
Brasília está inclusive em Brasília, na Praça dos Três Poderes, nos três palácios (Planalto, STF e Congresso), um em cada vértice do triângulo do arquiteto.
Foi a geometria que Lucio Costa escolheu para simbolizar a democracia e, por extensão, a plenitude do Estado de Direito. (Vale lembrar que Estado de Direito é aquele no qual todos, cidadãos e instituições, governantes, parlamentares e juízes, todos estão sujeitos ao que determina a Constituição e as leis vigentes.)
Porém, não basta sonhar, desenhar e construir. Brasília cedeu a Praça dos Três Poderes, que bem poderia se chamar Praça da Democracia, para a ditadura militar instalada em 1964. Lá está o Mastro da Bandeira, mais alto do que as duas torres do Congresso, construído pelos militares para mostrar que a força subjugava a democracia.
Nelson Rodrigues dizia que em Brasília ninguém é inocente, todos são cúmplices. Por certo se referia àqueles que contornam o poder, aos que frequentam os ambientes dos poderosos. O poder é insidioso.
Das poucas vezes que entrei no Palácio do Planalto, a trabalho (não foi mais que meia dúzia), confesso que senti algo como um estufar de peito, uma veleidade que surgia não sei de onde e de mim se apropriava, como se eu finalmente estivesse provando ao mundo e a mim mesma que existia. Sorte minha é que o delírio durava só o tempo que passava entre as paredes e os vãos livres de Niemeyer. Sob o Sol, eu voltava a ser a repórter de Cidades.
O poder faz isso com os humanos. Há os que passam ao largo dessas ilusões, são raros.
Costuma-se dizer, também, que em Brasília todo mundo conhece o filho de um ministro, a namorada do filho de um senador, a prima da irmã da cunhada de um deputado. Essa lenda só vale para quem mora no Plano Piloto e nos bairros ricos e de classe média alta, ou seja, para não mais de 500 mil habitantes. Os outros 2,5 milhões vivem ao largo dessa teia de poder.
Há também uma inquietação tipicamente brasiliense: é quando somos informados de mais um absurdo acontecido em um dos palácios dos Três Poderes. Os horrores logo ali, a menos de 15 km de onde escrevo, e minha indignação é do mesmo tamanho que minha impotência.
Uma brasiliense com a indignação presa na garganta por morar tão perto da Praça dos Três Poderes, e a única coisa que posso fazer, sozinha, é o que faço agora, enquanto ainda posso: escrever.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.