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Minha mãe é índia de dormir no chão, passar dias em silêncio e de rir muito

Minha mãe suporta adversidades com o estoicismo dos índios. Com a pandemia, ela reza, mas não muito, se preocupa e se diverte com a máscara

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Editoria de Arte/ Metrópoles
Arte índia grávida
1 de 1 Arte índia grávida - Foto: Editoria de Arte/ Metrópoles

Minha mãe é uma índia, de dormir no chão, de passar horas, dias em silêncio, de rir de qualquer bobagem, especialmente de um malfeito. Não conheci ninguém mais forte, de uma fortaleza de flor, que se desfaz num sopro e renasce na floração seguinte.

Minha mãe é filha de índia de Parintins, Amazonas. Ela conta que minha avó era filha de um tuxaua, que em tupi quer dizer cacique. Que foi tirada a força e levada para Manaus. Minha mãe não sabe dizer qual etnia, qual aldeia. Só se lembra dos cabelos longos e negros de uma mulher franzina e forte, que cuidava da casa, dos quatro filhos, do quintal comprido.

Minha mãe é filha de uma índia com um negro que cavava buracos para a rede de esgotos de Manaus, por volta dos anos 1940/1960. Ia e voltava a pé para o trabalho. Era casmurro – foi o que guardei do único contato que tive.

Minha mãe ficou órfã de mãe aos 9 anos. Ela não sabe dizer muito bem do que minha avó morreu, talvez de tuberculose, ela supõe. Só se lembra do corpo da mãe no caixão, os cabelos longos descendo sobre os seios mortos.

Então minha mãe foi entregue para uma família rica que morava num casarão nas proximidades do Teatro Amazonas. Ela seria “dama de companhia” da única filha de um casal cujo marido era português e comerciante de alguma coisa em Manaus.

Minha mãe tem orgulho deles e lhes é muito grata. Ela os chama de “aqueles que me criaram”. Minha mãe ficou lá até adulta, até se casar. Estudou até o 3º ano, nunca recebeu salário, apenas casa, comida e roupa. Ajudava as demais empregadas no serviço doméstico – e criava a maior confusão no jogo de intrigas que costuma acontecer nessas circunstâncias.

Minha mãe é uma das pessoas mais inteligentes e perceptivas que conheço. Num segundo, é capaz de perceber tudo o que acontece no ambiente onde está, quem são aquelas pessoas, o que pretendem e como pode se defender, caso necessário.

Minha mãe tem 87 anos, nunca teve um problema sério de saúde, exceto um terrível acidente de carro quando ela quase morreu e, muito mais tarde, quando recebeu uma medicação errada num hospital particular de Brasília. O remédio baixou a pressão dela quase a zero e ela foi parar na UTI.

Minha mãe é a pessoa mais comedida na alimentação que conheço, come como um passarinho. Come banana todos os dias, junto com a comida do almoço, qualquer que seja ela; sonha com tucumãs e pupunhas. Faz o melhor peixe que já comi – ao modo da Amazônia, apenas cebola, pimenta do reino, sal e muita água. Pelo gosto, sabe se o peixe é de rio ou de mar, sabe cozinhar miolo de boi, língua de boi, rim de boi, fígado de boi, caranguejo e pirarucu desfiado, cardápio diário de minha infância. Em Belém, ela gostava de comer chibé de farinha – farinha de puba levemente molhada em água morna, um pouco de sal e pirarucu frito.

Minha mãe suporta (suportou) grandes adversidades com o estoicismo dos índios. Agora mesmo, com a pandemia, ela reza, mas não muito, se preocupa e se diverte com as máscaras. Tem certeza de que isso vai acabar em breve e faz planos, muitos. Minha mãe sonha o tempo inteiro, mas não perde o real de vista, ao modo dela. Minha mãe tem um real muito particular, que ela inventa, desinventa e reinventa, sempre para dar conta das circunstâncias.

Minha mãe namorou até há poucos meses. Minha mãe adora namorar. Tem por homem uma veneração quase religiosa, embora goste bastante de heresias.

Minha mãe ouve os sons mais imperceptíveis, sente o cheio mais inodoro, sabe dizer as horas pelo lugar do sol no firmamento.

Minha mãe foi a mulher mais linda que já conheci. Índia com cabelo de negro, magra e miúda, mas não muito, tem modos de princesa, delicados, silenciosos, altivos. Mas sabe se defender como uma leoa – chego a ouvi-la rosnar quando se sente ameaçada ou quando não consegue o que quer.

Minha mãe ama a vida. Vibra com o vento, se desespera com a chuva, se acende com o calor.

Feliz dia das mães, mãe.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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