Mesmo moderno, um zoológico será sempre uma prisão
O espetáculo dos bichos expostos em recintos parece a Terra depois que Noé partiu levando consigo as espécies que pôde salvar
atualizado
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Todos os fins de semana, aos domingos especialmente, forma-se longa fila de carros uma das margens da EPGU, a Estrada Parque Guará. É a espera para entrar no Zoológico de Brasília. Ao redor das guaritas, um colorido de balões, bolas, cata-ventos, bichos infláveis, pipocas, balinhas. Dentro dos carros, um alarido de crianças ansiosas.
Elas não sabem e talvez demorem muito a saber mas o que as espera é um cenário de solidão. Um zoo é um espetáculo trágico que, aos poucos, as sociedades mais civilizadas vão desmontando ou mudando a destinação. O zoo é uma exposição da soberba da espécie que domina o planeta há pelo menos 200 mil anos.
E quem primeiro se vê, quem é mais visitado no zoo, é o maior animal que ainda habita a Terra, um monumento de carne, ossos e marfim. Pesa entre 4 a 6 toneladas, mede em média 4 metros de altura, consegue levantar até 10 mil quilos e está aprisionado como passarinho na gaiola. Diante da espécie bípede e falante, passarinhos e elefantes têm o mesmo tamanho da indiferença.
Belinha é uma elefanta viúva. Faz pouco mais de um ano que Babu morreu de infarto fulminante. Os dois vieram do Parque Nacional Kruger, na África do Sul. Quando me aproximei, ela comia lascas de um capim comprido e espesso. Havia, aos meus olhos, um certo desinteresse pela refeição, como quem espalhava a comida pelo prato querendo outra coisa que ali não estava.
Então ela parou de remexer os matos com a tromba, levantou a cabeça e tive a impressão de que me olhou fixamente. Percebi tristeza naquele olhão do tamanho de um abacate – mas talvez eu visse nele o que estava em mim. Em seguida, ela me deu as costas e seguiu vagando como um sem destino – não havia muito aonde ir.
Os recintos do zoo de Brasília são bem cuidados – muitos deles seriam facilmente adaptados para atrações de parques ecológicos. Têm até redes feitas de cascas de árvore. Laguinhos, áreas sombreadas, bicas da água com volume de pequenas cachoeiras, passagens subterrâneas, pequenas elevações, árvores, cipós de Tarzan, tramas de cordas. Vi até uma espécie de barra de levantar peso, toda em madeira.
No tempo em que lá estive, não vi nenhum bicho nos seus playgrounds.
Chocolate é o outro elefante do zoo. Ele tem uma história triste – como se as demais não o fossem também. Por maltratado, foi retirado de um circo, há onze anos. Vive sozinho num castelo com as dimensões de uma mansão do Lago Sul. E um quintal do tamanho da Praça dos Cristais.
Embora herbívoro (como pode, tão grande e só comer folhinha?), o elefante está no topo da cadeia alimentar. Poucos são os predadores que ousam saborear um naco da carne elefantídea. Têm o domínio da savana; as fêmeas vivem em bandos; os machos adultos, solitários. Quando perdem os molares, já sabem que é hora de parar e esperar a morte. Sem os dentes, não têm mais como se alimentar. Daí a lenda de que elefante, percebendo o fim, sai à procura de um cemitério. Não é bem assim. Os velhinhos, acima de 60 anos, se juntam para morrer de fome.
Alguma alegria se vê no zoo quando uma espécie de ave (não achei placa de identificação), em grupo de uns 70, nada no laguinho, coladinhos uns aos outros, numa coreografia de desenho animado. Olham todos na mesma direção, viram-se todos ao mesmo tempo. Estão sozinhos, fora de seu habitat, mas estão juntos.
Há um silêncio de cemitério nos recintos dos mamíferos. Nenhum grunido, nem bramido, nem rugido. As zebras, os cisnes, até os macacos estavam amortecidos na tarde friorenta da quinta-feira 27/06. Até o rinoceronte, com sua cabeçorra disforme – de quem Dali tanto gostava – até ele parecia um fantasma de si mesmo.
As crianças faziam “miau” para a jaguatirica, os adolescentes sentiam asco dos urubus, livres visitantes do zoo. Os adultos tentavam fotografar o urso que comia um quarto de melão.
Tentei ver o lobo-guará e não consegui. A espécie que tanto diz de nós, brasilienses, quando em liberdade vagueia por mais de 100 km noite adentro. Precisa de distância, silêncio e vazios – como a estranha espécie humana que habita Brasília.
O primeiro zoo de que se tem notícia existiu há 4 mil anos, no Egito. O de Brasília nasceu antes da cidade, em 1957, com um presente do embaixador indiano, a elefanta Nely, bicho de estimação dos brasilienses. Morreu em 1994.
O zoológico da capital do urbanismo moderno tentou criar prisões um pouco menos cruéis para os bichos. E tem seguido a trilha dos novos tempos, com educação ambiental, pesquisa, tratamento e guarda de animais que já não sabem o que é a liberdade.
Um zoológico parece a Terra depois que Noé partiu levando consigo todos os bichos que pôde salvar.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.