História de um homem cambaleante e gentil, uma flor no asfalto
Quando Vicente dorme na calçada, é quase certo que o morador vai cobri-lo com um lençol ou um cobertor. “Tive tudo quando era criança”
atualizado
Compartilhar notícia
Esse homem debaixo desse lençol é o Vicente. Não sei o sobrenome, mas o conheço há uns dez anos. É meu vizinho. Vicente é um cavalheiro: Bom dia! Está tudo bem? Cuidado com o carro! Felicidades!
Na noite de sexta-feira (08/11/2019), Vicente estava dormindo de bermuda, sem camisa, na calçada da casa ao lado. As duas mãos sob a cabeça, feito travesseiro, dormia o sono dos bêbados. Peguei um lençol e coloquei sobre ele, com o cuidado de quem cobre uma criança.
– Obrigado, muito obrigado, ele disse sem abrir os olhos.
Não fiz nada de novo nem de diferente. Cobrir o Vicente é uma rotina da vizinhança. Os moradores mais antigos (e compassivos da dor humana) o cobrem quando o veem dormindo a calçada. Nas noites mais frias, cobertores. Nas quentes, edredom, lençol. Quando acorda, ele sai arrastando a si mesmo e o pano que o cobria.
Vicente deve ter uns 50/60 anos. Mora na quadra ao lado. Já foi internado muitas vezes em clínicas de recuperação do alcoolismo. Quando o corpo está quase desistindo, a família o leva para um hospital público, e tão logo se recupera minimamente volta para a rua.
De casa, ouço o vozeirão do Vicente brigando, xingando, sentado na calçada. A raiva vem, deságua no asfalto e vai embora. Então, ele deita e dorme ou se levanta e sai arrastando o corpo inchado (os tornozelos já desapareceram sob a carne dilatada). Os dedos dos pés são intumescidos e desalinhados. O dedão direito, inflado, faz um ângulo de uns 30 graus em relação aos demais.
Os passos estão a cada dia mais vagarosos. Dia desses, depois do meu “tudo bem, Vicente?”, ele respondeu:
– Tô cego, como quem diz “vai chover” ou “que calor”.
Um dia, na porta do supermercado, ele me pediu dois reais. Eu sabia o que ele queria. Fui lá comprei o gorote. E quando fui pagar, a moça do caixa me lançou um olhar de ódio. Ela quer salvar o Vicente do pecado. Não sabe que o meu amigo já escolheu o destino dele ou foi escolhido pelo destino. (Às vezes, a vida permite escolhas. Outras, ela é quem nos escolhe).
Uma vez, eu o ouvi dizendo – Vicente fala sozinho o tempo todo, como se estivesse conversando com a rua, a quadra, os carros, os cachorros, os passantes –, eu o ouvi dizendo: “Tive tudo quando era criança, tô assim porque quis”.
Noutro dia, depois de uma senhora bater levemente no ombro dele, em afetuoso cumprimento, ele se apressou: “Lave a mão”, como quem pede desculpas por viver.
Teve outra vez que ele, na porta de um restaurante, se repreendeu sem que ninguém tivesse dito nada: “Vou ficar aqui na rua, tô fedendo a mijo”.
Vicente parece nunca perder a noção de si mesmo. Imagino que não há cachaça que dê conta dessa dor contínua.
Quando fico mais de quatro ou cinco dias sem cruzar com o Vicente, me pergunto o que terá acontecido.
Vicente é minha flor de asfalto. E como dói, diria Drummond.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.