Fofoca antiga: Rubem Braga e Marcel Proust dormiram na mesma cama
O endereço-fetiche é célebre: 44 Rue Hamelin, Paris
atualizado
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Quem adora uma fofoca literária, crônico-literárias por assim dizer, deve saber que o mais reverenciado cronista brasileiro dormiu no mesmo quarto que um dos mais endeusados romancistas franceses. Rubem Braga e Marcel Proust dividiram o mesmo teto, a mesma alcova e o mesmo colchão, embora a uma distância de 25 anos um do outro.
O endereço-fetiche é célebre: 44 Rue Hamelin, Paris. Com crises de asma desde a infância, Proust chegou à vida adulta com uma bronquite severa. Muito debilitado, à base de morfina, revisou os últimos dois volume de Em Busca do Tempo Perdido até morrer de doença e exaustão em 18 de novembro de 1922, aos 51 anos, no quarto andar do predinho de quartos alugados.
Vinte e cinco anos depois, em 1947, o antigo casarão receberia um casal de inquilinos vindos de um país exótico: Rubem Braga e Zora Seljan. Ocuparam um cômodo do 4º andar sem saber da vida pregressa do lugar. Os vizinhos logo se encarregaram de contar que Proust havia morado na mesma rua, mas em outro número.
Mesmo assim, era coincidência boa demais para não ser aproveitada até o osso pelo cronista capixaba. Em As velhinhas da rue Hamelin, Braga descreve, com sua prosa primorosa, a paisagem humana de Paris. Detalha o jeito e a roupa dos franceses e das francesas de muita idade que andavam pela rue Hamelin. Uma delas, por exemplo, “usa um vestido que se fecha no pescoço em uma espécie de gola alta, onde há rendas e talvez elástico, talvez barbatana, uma gola que mantém a cabeça ereta através dos séculos, capaz de ver de cima, sem se curvar, as pequenezas do mundo presente”.
(Aff que coisa mais bem escrita).
Segue o relato: “Há dois velhos extraordinariamente magros, extraordinariamente brancos, vestidos de negro, com chapéus negros, que andam juntos, mas não se falam nunca, como se há quarenta anos atrás tivessem esgotado de maneira irremediável o último assunto”.
Já estava muito bom desse tamanho: Rubem Braga tinha morado no mesma rua onde Proust havia passado seus últimos anos. Depois da crônica publicada, vem o melhor: o cronista descobre que tinha morado não apenas na mesma rua, mas no mesmo prédio e no mesmo andar, o 4º, onde o genial dândi francês tinha vivido até a morte.
Soube de tudo isso graças à biografia que Léon Pierre-Quint fez do amigo Proust. Lá estava a descrição do quarto, um cômodo muito frio, longe da calefação central, e de móveis sombrios. Não havia dúvida, era o mesmo lugar. Até das manchas na banheira, Braga se lembrava. E até apostava que o francês não chegou a tomar um mísero banho de chuveiro, posto que esse conforto ali não havia.
Aí então escreve a célebre crônica, 44, rue Hamelin (Diário Carioca, 18/04/1948) anunciando ao Brasil que tinha dormido na mesma cama que o moço das madeleines. E caçoava, deliciosamente, de si mesmo:
“A pior coisa que se pode dizer a meu respeito (entretanto desmentirei) é que não li Proust. Posso perfeitamente em qualquer salão discorrer sobre Swan, descrever Combray ou Balbec, falar de Albertina ou da senhora duquesa de Guermantes – mas ler mesmo, no duro, aqueles volumes todos, é duvidoso que eu tenha feito.”
E declara ao Brasil com falsa e sarcástica solenidade: “Não existe ninguém hoje mais autorizado neste país a falar sobre Proust” do que ele próprio, Rubem Braga, embora tenha confessado que não havia lido nada ou quase nada do idolatrado francês.
Porém muito mais importante do que ter dormido na cama de Proust foi ter dormido em outra cama naquela temporada parisiense (mas isso o cronista não escreve, quem conta é seu biógrafo, Marco Antonio de Carvalho). Naquela Paris que tinha acabado de se livrar da ocupação nazista, Rubem Braga viveu uma paixão fulminante, e correspondida, com uma jovem e absurdamente bela mulher casada, Tonia Carrero. Um amor proustiano-braguense cheio de nunca mais quero te ver, mas não sei viver sem você. Puro Proust, puro Braga.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.