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Fiz 66, um número graficamente belo para uma vida sem ambições

Aos 66, cheguei a uma colina de onde consigo avaliar meus fracassos insuperáveis. Ok, diz minha psicanalista, você fez o que pode

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Fernando Lopes
Fernando Lopes
1 de 1 Fernando Lopes - Foto: Fernando Lopes

Mês passado fiz 66. Talvez pra desviar do susto de estar perto dos 70, me deixei encantar pelo grafismo do número dobrado, a beleza côncava do 6, os ombros levemente curvados em reverência, um círculo em um meio círculo, o completo no incompleto, o que terminou e o que ficou pela metade, uma ponta solta no ar.

Também olho para longe e admiro outras mulheres da minha idade ou bem perto: Chistiane Torloni (67), Elisa Lucinda (66), Maitê Proença (66), Madonna (65), Sharon Stone (66). Desde os 50 acompanho, como um espelho idealizado, o envelhecer dessas mulheres lindas e talentosas. Pelo menos três delas passaram por terríveis tragédias. E seguiram e seguem seguindo.

O que mais me desorganiza não são as marcas da velhice, tanto estéticas quanto fisiológicas, nem mesmo o vislumbre da morte. O mais difícil tem sido a soma das tragédias e das derrotas íntimas, de mim comigo mesma, acontecimentos-limite que atravessaram o meu viver.

Aos 66, cheguei a uma colina de onde consigo avaliar meus fracassos insuperáveis. Ok, diz minha psicanalista, você fez o que pode. Ok, doutor Freud, mas não existe borracha que apague certas dores. O tempo e a vida (bem) vivida, dia após dia, isso sim pode nos distrair das coisas terrivelmente passadas.

Como cheguei até aqui, não sei. Alguém saberá como chegou aonde chegou? Nem sei mesmo se tive algum livre arbítrio nesse percurso. Cada vez mais penso que alguém do outro lado brinca comigo e com meu destino, às vezes muito generoso, outras, perverso. O grande espanto é o de ainda estar viva, não porque já estivesse na idade de morrer, mas porque o meu viver atordoado está se esticando como quem diz: ainda tem mais, seja lá o que for, ainda tem mais.

Só me resta seguir, apostando no que disse Edgar Alan Poe: a vida é um sonho dentro de um sonho. Em sendo assim, simbora sonhar, coisa que sei fazer muito bem. Foi sonhando que vivi. A viva pela vida em si mesma, um copo de água fresca.

Nunca tive ambições, era tanto medo e ao mesmo tempo tanto prazer de estar viva que não sobrou tempo quieto para imaginar um depois. Nunca esperei pelo futuro, no máximo o de ver o filho voltando para casa são e salvo ou de esperar o salário entrar na conta.

Foi um viver desesperado. Os ciclos da vida se abrindo e se fechando por si mesmos, acompanhados de intuições das quais nem eu mesma me dava conta. A única coisa sobre a qual eu tinha absoluta certeza, uma certeza animal, era a de que eu precisava continuar viva porque outras vidas dependiam da minha. Como uma galinha, cacarejei diante do perigo. Como uma barata, fugi pelo buraco.

Como uma lagartixa, subi pelas paredes. Quantas vezes me fingi de morta e morta estava? Quantas outras fiquei na janela vendo a vida viver? Quantas desci e me misturei na multidão – é quando me sinto mais vividamente viva, é no meio de muita gente. Se consegui aprender algumas coisas nesses 66, uma delas é de que a vida não tem sentido – ou tem, mas são tantos quanto tantos somos.

Cada um traz o próprio sentido cravado no corpo e ele se impõe, dá rasteira, nos joga contra a parede, pedindo pra ser ouvido, pra se revelar, pra vir ao mundo. E essa não é uma travessia fácil. Perto daqui de onde escrevo, mora um homem chamado Adão. Debaixo de uma árvore e dois arbustos, ele armou um barraco de remendos.

E contornando todo o seu território particular e vívido, vasinhos de plantas de todo o tipo, vasos que ele constrói, plantas que ele planta. Só sei o primeiro nome do “homem mais velho do mundo”, ele me diz. Talvez ele nunca tenha se perguntado qual o sentido da vida: para o Adão, é a vida em si mesma, que ele vive e faz viver todos os dias.

Adão sabe o que Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, também sabia: que o sentido oculto das coisas “é elas não terem sentido oculto nenhum/É mais estranho do que todas as estranhezas/E do que o sonho de todos os poetas/E do pensamento de todos os filósofos,/Que as coisas sejam realmente o que parecem ser/E não haja nada que compreender”. O poeta então conclui que “as coisas não têm significação: têm existência./As coisas são o único sentido oculto das coisas”.

Adão e Caieiro, separados no tempo, no espaço e nas letras, sabem das mesmas coisas: viver é estar aqui e agora, quando nem mesmo sabemos o que é aqui e o agora já passou.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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