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Em tempos extremos, a coragem é uma virtude inegociável. Mas não é fácil

Temos sido convocados para o jogo da grandeza versus a fraqueza. Mas há muitas nuances nessa partida decisiva para cada um de nós

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Crônica de Conceição Freitas: Em tempos extremos, a coragem é uma virtude inegociável. Mas não é fácil
1 de 1 Crônica de Conceição Freitas: Em tempos extremos, a coragem é uma virtude inegociável. Mas não é fácil - Foto: Guilherme Prímola/Metrópoles

Numa de suas frases mais conhecidas, Clarice Lispector escreveu que “coragem e covardia são um jogo que se joga a cada instante”. A do Guimarães Rosa é ainda mais repetida: “O que a vida quer da gente é coragem”. Flaubert foi irônico: “Eu não tenho nenhuma coragem, mas procedo como se a tivesse, o que talvez venha a dar no mesmo”.

Coragem e covardia são antônimos, mas não necessariamente. Não poucas vezes se confundem: um gesto silencioso de coragem pode parecer uma covardia e uma covardia espalhafatosa pode ser confundida com coragem.

Coragem é sinônimo de destemor, bravura, brio, ousadia, tenacidade, zelo, grandeza, nobreza.

Covardia é sinônimo de fraqueza, medo, pânico, vacilação, hesitação, paúra, pavor, tibieza.

Desde o início é assim. Sem coragem, o homem não sairia da caverna. Em tempos extremos, somos convocados a todo instante para o jogo da hombridade versus a tibieza.

A coragem, porém, não é uma virtude estática. Ela se sustenta em valores. Como escreveu André Comte-Sponville, “a coragem pode servir para tudo, para o bem como para o mal”. E mais adiante, diz o filósofo francês: “Maldade corajosa é maldade. Fanatismo corajoso é fanatismo”.

O miliciano que matou Marielle deve ter sido exaltado entre seus cúmplices pela coragem. Nós, os do outro lado, sabemos que foi um gesto de traiçoeira covardia.

Coragem e covardia são valores ideológicos, humanitários, sustentados na ética da civilização e nos valores mais intimamente pessoais.

Coragem pode ser admitir o erro, pode ser reconhecer a própria covardia. Pode ser até dar a cara a tapa, tudo depende das circunstâncias e do que está em jogo.


Tenho medo de sangue, tenho muita dificuldade para socorrer um doente – adoeço com ele, desmaio com ele. Quando contei essa covardia (dentre outras, inconfessáveis) a uma paramédica, ela me disse que também era assim, mas que foi se educando aos poucos, vendo na internet pequenos ferimentos até que a coragem começou a se formar dentro dela como a cicatriz na ferida, vagarosamente.

Muito se diz que o mais antigo sentimento humano é o medo. Coragem exige que se enfrente essa covardia que nos é atávica. Coragem se aprende encorajando-se.

Há uma coragem que tem nos feito muita falta, a coragem de não ter razão, a coragem de não ter opinião, a coragem de saber que não poucas vezes um argumento menos inteligente pode conter a honestidade que o argumento mais inteligente não tem. É o que se chama de honestidade intelectual. A razão pode estar com o bronco e não com o esperto. A razão não é um jogo de inteligência. É a lógica sustentada em valores inegociáveis.

Coragem é defender um valor no qual se acredita mesmo que seja contra seus próprios interesses. Coragem se aprende, a covardia nasce com a gente. A coragem pode estar no silêncio e a covardia, no grito. Coragem é mastigar a pedra da própria covardia.

Uma das mais corajosas coragens é da renúncia. A renúncia pode ser um gesto de coragem. A coragem de perder é uma das mais corajosas.

A coragem é solitária. Às vezes surge de um lugar desconhecido dentro de nós – como eu tive coragem?

A covardia é mais tentadora e anônima: ninguém vai saber que eu fiquei quieta, enquanto a vizinha pedia socorro. Ou que eu me calei quando ouvi injustiças sobre alguém a quem eu podia defender, mas que naquele momento não seria vantajoso pra mim.

Coragem é dizer: agora chega, pra que mais? Pra que mais dinheiro, pra que mais poder, pra que mais prestígio, pra que mais likes, pra que mais compartilhamento, pra que mais elogio, pra quê?

A fama e o poder, quaisquer que sejam, são o território fértil da covardia: Eu posso tudo, posso até ser covarde que os meus pares vão aplaudir ou, os menos bajuladores, silenciar.

A coragem é cansativa e arriscada. A covardia é preguiçosa e oportunista e não poucas vezes arrogante – a arrogância é o truque mais usado pelos covardes.

Toda vez que consigo saltar sobre a covardia me sinto mais à vontade dentro da minha carcaça. Até que ela se insinue novamente: a covardia sabe ser insinuante.

A coragem é um exercício, a covardia é um vício; a coragem é o sol, a covardia, o breu.

E não tem preceito nem cartilha – é um jogo que, às vezes, nem sabemos que estamos jogando. Mas vencida a peleja, brota uma serenidade de sol nascente, um contentamento de ter conseguido honrar a si mesmo e à própria humanidade.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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