É um acervo da memória brasiliense. Mas é também uma história de amor
O Arquivo Público do DF atiça o desejo de conhecimento de pesquisadores, jornalistas e artistas plásticos, entre muitos outros profissionais
atualizado
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Um dos modos de se ganhar força para enfrentar esses dias terríveis é se alimentar do melhor que há em si mesmo. Vale para pessoas, para povos e para países. Um dos grandes feitos deste pobre país para se transformar numa nação de sólidos laços democráticos foi a construção da capital no coração do território para unir os brasis até então isolados uns dos outros.
Lugar onde a memória desses dias épicos surge em todo o seu esplendor e paixão, o Arquivo Público do Distrito Federal (ARPDF) vem sendo repetidamente desprezado pelos governantes, que dele se utilizam como moeda de pagamento pelos serviços prestados na campanha eleitoral.
O Arquivo Público atiça o desejo de conhecimento de pesquisadores, jornalistas, artistas plásticos, escritores, documentaristas, fotógrafos, estudantes tamanha a riqueza da documentação disponível para consulta. Estão lá, por exemplo:
. Conjunto de 540 fotos aéreas, de meados da década de 1950, que cristalizaram em imagens o que havia no quadrado antes de ele se transformar em Distrito Federal. Ou, como diz de modo mais rico e preciso, o historiador Elias Manoel da Silva: “É uma janela que permite aos historiadores e pesquisadores de diversos outros campos do conhecimento acessar com uma acuidade extraordinária um tempo que não nos pertence mais: campos, matas, agricultura, picadas, hidrografia, casas de fazenda… e uma infinidade de outros dados”.
. Milhares de fotos da construção, milhares. E, dentro delas, o precioso acervo do fotógrafo Mário Fontenelle.
. Centenas de cartas enviadas a Juscelino Kubitschek por brasileiros de todo o país. Há nelas pedidos dos mais diversos, a maioria deles por trabalho, lote e moradia.
. Dossiês das empreiteiras que construíram Brasília.
. Dezenas de filmes feitos no canteiro de obras desde os primeiros movimentos de terra, de candangos e de tratores.
. Originais da Sinfonia da Alvorada, com poema de Vinicius de Moraes e partitura de Tom Jobim.
. Documentos Goyaz, coleção de registros que foram produzidos antes da construção de Brasília. Cartografia, inventários, processos de fazendas, jornais, publicações sobre a pré-história do DF. Trinta acervos públicos e particulares cederam cópia de suas peças para o ARPDF.
. Depoimentos de 101 candangos, de arquitetos a peão de obra, de empreiteiro a lavadeira, sobre a construção da cidade. Entre eles, Lucio Costa e Oscar Niemeyer. É o Programa de História Oral, desenvolvido entre os anos 1980/1990.
. Toda a coleção da Revista Brasília, publicação da Novacap que registrou com imagens e textos toda a construção da capital.
. Diários de viagens da Missão Cruls, a Comissão Exploradora do Planalto Central que, em fins do século 19, trouxe cientistas de várias áreas do conhecimento para escanear miúda e intensamente, com a melhor tecnologia da época, a região onde se instalaria a nova capital do Brasil.
Nesses diários, há uma desesperada história de amor registrada em seis cadernetas pelo engenheiro militar Hastimphilo de Moura, integrante da Missão Cruls. Hastimphilo mandava cartas do sertão goiano para a mulher amada, que morava no Rio de Janeiro. Os manuscritos saíam de Pirenópolis, Cidade de Goiás, Corumbá, Formosa e Planaltina, em lombo de boi, até chegar às mãos de Clarinda, ou Lilinda, como o marido a chamava.
Quatro meses depois de se enfurnar no Planalto Central, Hastimphilo anotou: “Ultimamente muito tenho sofrido, porque quero ir para junto dela e não posso. É um verdadeiro desespero!”.
O engenheiro apaixonado adoeceu e teve medo de morrer. Louco de amor, pediu à amada: “Se conservares sempre vivo na imaginação o nosso amor, se não esqueceres o teu Timphinho, se fores fiel aos juramentos dados, se compreenderes bem a vida, poderás te conservar viúva e honesta e virtuosa a vida toda, e feliz, embora pobre.”
Com a saúde recuperada, mas morto de saudade, Hastimphilo quis abandonar a missão. Para acalmar o marido, Clarinda veio passar uns dias com ele no cerrado. Naquela época, não era uma viagem, era uma expedição de desbravamento. E ela só tinha 18 anos.
O acervo do Arquivo Público do DF é muito maior do que cabe numa só crônica. Fica aqui o registro daquilo que mais acelera meu coração brasiliense.
- Crônica em solidariedade aos apaixonados, especializados e bem preparados servidores do Arquivo Público que protestam contra a nomeação de pessoal sem qualificação e sem conhecimento do acervo e do ofício de arquivista para cuidar e guardar deste bem tão valioso para a formação da cidadania brasiliense e brasileira.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.