É de cair o queixo a crônica que Rubem Braga fez sobre Lucio Costa
O mestre dos mestres da crônica traçou um sagaz quadro de quem era Lucio Costa muito antes de o arquiteto rabiscar o Plano Piloto
atualizado
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É um encontro perfeito: um dos mais celebrados cronistas brasileiros escrevendo sobre um dos mais celebrados arquitetos brasileiros. Era 1954, o primeiro estava com 41 anos; o segundo, 52. Viviam os dois na mesma cidade, o Rio de Janeiro, então capital do Brasil, nos anos bem próximos do surgimento da Bossa Nova e da eleição de Juscelino.
Não sei o que é mais incrível na crônica biográfica de Rubem sobre Lucio: se a afiada e rica apuração das informações, a perspicácia com que o cronista percebe o personagem ou se as agudas observações sobre a personalidade do arquiteto microbiografado.
O mais incrível é o final do texto – irônico, inesperado, impertinente.
A crônica deliciosamente coloquial começa de forma direta mas já revelando as origens aristocráticas do urbanista: “Nasceu em Toulon, em 1902; seu pai, o almirante Ribeiro da Costa, era irmão do general Ribeiro da Costa, pai do ministro Ribeiro da Costa”. (Até com sobrenome o velho Braga se divertia).
Em seguida apresenta as credenciais do personagem, um adolescente vindo da Europa e matriculado pelo pai na Escola Nacional de Belas Artes: “É um estudante diferente que começa a ganhar tudo quanto é concurso que aparece, e apesar de ser um desenhista altamente sensível e aquarelar com maestria, desiste da pintura pela arquitetura e, quando reprovado em Composição, admite tranquilamente que a nota foi justa”.
Logo, o filho do almirante e sobrinho do general se apaixona pela arquitetura do Brasil colônia e monta escritório e nele faz arquitetura neocolonial. “Mas isso não dura” e o jovem arquiteto larga o ecletismo, dá um tempo e depois radicaliza total: vira moderno.
Rubem Braga vai fundo no pequeno espaço da revista Manchete (868 palavras). Sem medo nem não-me-toques e com informações por certo obtidas com amigos comuns, revela singularidades quase íntimas do personagem: “Não apenas arquitetos como pintores respeitam como insuperável mestre e conselheiro esse homem que entretanto se encolhe na mais exagerada modéstia e na mais rude misantropia, capaz de responder a um amigo que o hospeda um fim de semana e lhe pergunta quando voltará: ‘Nunca mais’.”
O cronista cita, então, um dos mais surpreendentes (e foram muitos) gestos de Lucio Costa, o de abrir mão da vitória no concurso para projetar o Pavilhão do Brasil na Feira de Nova York de 1939, do qual Oscar Niemeyer foi o segundo colocado.
“O ministro do Trabalho espanta-se com esse homem que o chateia para anular um concurso que venceu; o caso é virgem. À força de insistência junto às autoridades (ele, que detesta ser chamado para uma conversa com qualquer ministro) consegue autorização para alterar o projeto, leva Oscar para os Estados Unidos, faz projeto conjunto, divide com ele o prêmio”.
Lucio Costa ainda nem havia surpreendido o Brasil e o mundo da arquitetura com o memorial descritivo do Plano Piloto de Brasília, um texto literariamente viçoso, e Rubem Braga já farejava o talento do arquiteto para construir maravilhas com as palavras: “Embora escreva raramente, surpreende pela segurança e clareza do estilo, entretanto não isento, às vezes, de graça”.
Passados 70 anos, todas essas informações estão vasta e exaustivamente citadas na extensa bibliografia sobre Lucio, mas o mestre dos mestres da crônica constrói muito antecipadamente um texto agudo, divertido, sem firula, sem medo das palavras e sem deixar de fora nenhum dado essencial sobre o personagem.
Rubem Braga conclui a crônica-biografia com uma observação surpreendente, que revela o lado vivamente mordaz do maior dos cronistas.
Lucio Costa, diz ele, “usa – surpreendente extravagância em homem tão discreto – uns bigodes mongóis de decidido e inapelável mau gosto”.
Não seria Rubem Braga que iria levar o ilustre arquiteto ao barbeiro. O bigode seguiu impávido por mais 44 anos até a morte de Lucio aos 96.
*A crônica de Rubem Braga foi publicada na revista Manchete número 99, de 13 de março de 1954.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.