Desde que morreu, Fernando Pessoa não teve um minuto de paz
Pobre Fernando Pessoa, não teve um minuto de sossego depois que morreu, aos 47 anos
atualizado
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Desde que Fernando Pessoa morreu, há quase 90 anos, que começamos a procurar por ele – pela pessoa física dele. Procuramos pelo poeta, nós os leitores, os críticos, os teóricos, a gente literária em geral, os biógrafos em particular. Poucos foram tão biografados quanto o lisboeta que tinha dentro de si muitos outros de si mesmo – os heterônimos, personagens que ele criou e incorporou para escrever poemas como se fossem um outro dele mesmo.
Durante muito tempo, evitei ler as biografias de Pessoa até que, por força das circunstâncias, fui vasculhar a vida de um dos mais importantes poetas da língua portuguesa. Como é de conhecimento geral desse povo que gosta de literatura, o poeta de “tudo vale a pena se a alma não é pequena” teve uma vida menor se comparada à grandeza de seus poemas, ou mesmo se comparada a uma vida qualquer.
Pobre Fernando Pessoa, não teve um minuto de sossego depois que morreu, aos 47 anos. Cavoucaram e continuam cavoucando a vida do poeta em biografias, ensaios, peças de teatro, estudos literários, teses psicanalíticas, o escambau.
Por que essa sede pela vida do poeta? Penso que é a mesma que nos faz futricar a vida alheia. Curiosidade, às vezes mórbida, que se transforma num fetiche em se tratando de personalidades públicas. No campo literário, suponho que seja o desejo de entender de onde vem o talento assombroso de humanos aparentemente tão comuns quanto Fernando Pessoa.
Quanto a mim, fiquei paralisada, decepcionada, constrangida, ao saber de coisas da vida do poeta que eu não deveria saber — pra que saber? Me senti intrusa ao ver que Fernando Pessoa era demasiadamente humano, com tudo aquilo que nos faz não poucas vezes ter vergonha de se olhar no espelho.
E olha que há muito já não tenho a patética ilusão de que os grandes autores, os grandes artistas de qualquer modalidade, sejam humanos elevados à máxima potência. Não são. São apenas… humanos, com imperfeições as mais insondáveis, igualzinho ao mais tosco dos mortais.
O melhor de Fernando Pessoa está nos poemas e duvido, verdadeiramente duvido, que alguém consiga desvendar o mistério Pessoa. Dois anos atrás saiu mais uma biografia do poeta, Pessoa: uma biografia, de Richard Zenith, considerada por meio mundo o texto definitivo sobre o lisboeta de chapéu de coco. Nem por isso será a última.
Ninguém vai desistir de tentar desvendar o enigma sem saber que é aí que mora a poesia. É o mistério em sentido milagroso, mas há em nós um desassossego que nos faz querer saber o que não nos cabe saber, que nem mesmo o poeta sabe e nem a ele cabe saber.
Octavio Paz disse muito bem, no ensaio Fernando Pessoa, o desconhecido de si mesmo: “Os poetas não têm biografia. Sua obra é sua biografia. Pessoa, que duvidou sempre da realidade deste mundo, aprovaria sem vacilar que fôssemos diretamente a seus poemas, esquecendo os incidentes e os acidentes de sua existência terrestre”. Mas, paradoxalmente, Paz também olhou pelo buraco da fechadura.
Atordoada, fechei a biografia de Fernando Pessoa, arrependida da leitura. Até que uma amiga psicanalista e devoradora da boa literatura, me salvou: “Como uma pessoa com tanta tristeza, tanta melancolia, conseguia colocar em palavras sentimentos tão doídos? Ele não desistiu de si mesmo e transformou a dor em beleza”.
Recuperei o poeta dentro de mim.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.