Crônica negra de mais um menino preto assassinado pela polícia
João Pedro, 14 anos, estava em isolamento pela Covid-19. Brincava com amigos em casa quando foi atingido por um tiro de fuzil no abdome
atualizado
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A vítima, João Pedro Matos Pinto, 14 anos, de cor preta, não sabe por que foi morto. Declara que vivia com a família, pai, mãe e irmã, no Complexo do Salgueiro, São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro. Declara que, por estar em isolamento social em virtude da pandemia de Covid-19, primos e amigos vinham se reunindo todas as tardes para jogar sinuca na área externa da casa. Que na segunda-feira, 18/09, no meio da tarde, começaram a ouvir barulho de helicóptero se aproximando. Que o som foi ficando mais alto. Que o helicóptero dava rasantes cada vez mais próximos. Que todos correram para dentro de casa. Que alguns correram para a cozinha e que ele ficou entre a copa e sala. Que, em seguida, começaram a ouvir disparos que pareciam de fuzil. Declara que se lembra apenas de ter sentido um impacto forte na altura do abdome. Declara que não sabia se estava vivo ou já morto, mas se lembra de ter visto o amigo Matheus desesperado. Que os policiais foram embora sem prestar socorro. Que Matheus pediu ajuda a vizinhos que o colocaram em um carro e o levaram até o descampado onde o helicóptero havia pousado. Declara também que não deixaram que ninguém o acompanhasse. Declara que seu pai, Neilton Pinto, tem um quiosque na comunidade. Que o pai esperou que os tiros cessassem e, com a sócia e cunhada, Denise Roz, correram para se assegurar de que estava tudo bem em casa. Que, quando chegaram, o filho de Denise correu chorando para os braços da mãe. Cinco adolescentes estavam sentados no chão, na porta da casa, imobilizados pela polícia. Que os policiais do ataque haviam ido embora e um grupo da Polícia Militar havia fechado o acesso à casa. Declara que a tia perguntou pelo sobrinho. Que os policiais não deixaram nem o pai nem a tia entrarem em casa. Que logo souberam que João tinha sido ferido a tiro e que Matheus o tinha levado até o helicóptero da PM. Declara que o pai comentou a sentir-se mal, que parecia perto de desmaiar. Que a tia pediu aos policiais para que pudesse entrar em casa para pegar um copo de água, mas foi impedida. Declara que amigos e familiares passaram o resto da tarde, a noite e madrugada de hospital em hospital tentando encontrá-lo. Que não sabe dizer se chegou a receber algum tipo de socorro. Que só na manhã seguinte, por volta das 9h, a família o encontrou deitado na mesa gelada do IML de São Gonçalo. Declara que não sabe quando morreu, só se lembra de alguém dizer que aquele corpo era de João Pedro Matos Pinto, ele próprio. Declara que era aluno do Centro Educacional Pereira Rocha, em São Gonçalo. Que estava no 9º ano, que já havia decidido que queria ser advogado. Que frequentava a igreja com a família, que gostava de jogar futebol, sinuca e de mexer no celular. Declara que, depois de morto, voltou para casa e viu as paredes da sala, da copa e do quarto cheias de buracos do tamanho de uma tampa de garrafa. Declara que, no Brasil, a cada 23 minutos uma pessoa de pele negra é assassinada. Declara ainda que ouviu a tia dizer numa entrevista que não vai deixar a polícia “fazer meu sobrinho passar por bandido”. Que também ouviu o pai dizer que a polícia matou o filho e toda a família. Declara também que é errado a mídia dizer que “menino de 14 anos morre durante ação policial”. Que o certo é contar que menino de 14 anos foi assassinado pela polícia dentro de casa. Declara que foi morto numa operação das polícias Federal e Civil para prender traficantes. Que ninguém foi preso e que foi assassinado por ser preto e estar em casa com amigos. Declara que a escola onde estudava decretou luto e denunciou na página da instituição do Facebook que “a morte de João Pedro não foi uma tragédia ou um capricho do acaso. Foi causada por muitos vírus que, juntos, são letais. O descaso, a desigualdade, o desprezo e a impunidade”. Declara que estava sem aula, por causa da Covid-19, mas que acabou sendo assassinado por uma epidemia brasileira que mata humanos pretos como se fossem moscas.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.