Como um punhado de adolescentes das satélites me tirou de uma encrenca
Uma cidade não se faz por edital, decreto, concurso, nem mesmo com utopias. Do mesmo modo que um país não surge de uma invasão de terras
atualizado
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Durante um ano, logo depois do fim da pandemia, gastei muita sola de pneu cruzando as 33 RAs do quadradinho (hoje são 35). Rodei uns seis mil quilômetros a bordo de meu 1.0 tentando achar a alma de cada cidade-satélite para escrever crônicas sobre elas. Ao fim da tarefa, me senti achatada por um imenso vazio interno.
Depois daqueles seis mil quilômetros de vazio e solidão, de buscar desesperadamente paisagens, ambientes, acontecimentos, lugares, costumes, gírias, gestos que revelassem uma identidade brasiliense ou 33 identidades brasilienses, encontrei sim alguma beleza cenográfica mas muitas cenografias sem nenhuma beleza.
Demorei um tempo para entender o que havia acontecido. Logo eu que me derramei de amor por Brasília, que escrevi mais de 4 mil crônicas sobre a cidade, que entrevistei mais de uma centena de candangos dos tempos heroicos da construção do Plano Piloto? O que, afinal, havia acontecido comigo? Um enfado, uma exaustão, uma irritação e, pior, um oco na alma.
Até que um dia, ainda me fingindo de viva, participei de um encontro com dezenas de alunos de ensino médio das cidades-satélites. Eles me disseram (já escrevi uma crônica sobre isso) que, no dicionário deles, brasiliense é quem é rico; candango é quem é pobre e que eles eram nem-nem. E expressaram toda essa agudeza com sorrisos adolescentes.
Aquelas garotas e garotos me mostraram, involuntariamente, de onde vinha aquela inexistência urbana que havia me roubado todo o sentido de Brasília que eu cultivei com tanto ardor durante duas décadas.
Adolescentes nascidos no DF que não se sentem nem brasilienses nem candangos, porque apartados da tão aclamada qualidade de vida do Plano Piloto e arredores ricos. Porque desassociados do sentido inaugural de Brasília — construída como um gesto de soberania de uma Nação em busca de si mesma e de seu lugar no mundo.
Ainda segui inexistindo por algum tempo, a ponto de me irritar com toda e qualquer platitude sobre Brasília, inclusive as minhas. Até que, nos últimos três meses, tive de mergulhar na história de um dos palácios de Niemeyer. Foram dias de reencontro e reencantamento — não como era antes. Outro jeito de sonhar, um jeito menos sonhador, sem deixar de acreditar que o que aconteceu nesse retângulo goiano entremeado de chapadões, entre os anos 1956 e 1960, não foi qualquer coisa.
Uma cidade não se faz por edital, decreto, concurso, nem mesmo com utopias. Do mesmo modo que um país não surge de uma invasão de terras. São necessárias camadas e camadas de história, de lutas, de festas, de memórias coletivas, de nascimentos e mortes num suceder contínuo em um mesmo território, numa luta diária para fazer parte dele como alguém que a ele pertence.
Para muitos dos que aqui nasceram ou que estão aqui há décadas, Brasília é muito mais que uma cidade, é um encantamento, é um bem-viver. Sorte deles, porque para a maioria dos 3 milhões de habitantes do quadrado, Brasília é o Plano Piloto e o DF é um lugar como outro qualquer do Brasil, com a diferença de que lhes dá alguma oportunidade de sobrevivência.
Quanto a mim, resolvi minha encrenca com a ajuda dos adolescentes das satélites: Brasília é dos brasilienses, dos candangos e dos nem-nem. Brasília ainda vai surgir das camadas do tempo.
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* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.