Cobogó de índio, a arquitetura moderna amazônica à beira do rio
Nas profundezas da Amazônia, à margem do Rio Negro, um edifício une a técnica do homem branco e a sabedoria construtiva dos povos nativos
atualizado
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A arquitetura, como o artista, também tem de ir aonde o povo está, e se o povo é quase todo indígena, tem de se apropriar da vasta e telúrica sabedoria da gente nativa na construção de seus lugares de morar e conviver.
Foi assim que os arquitetos Marcelo Ferraz e Francisco Fanucci, do escritório Brasil Arquitetura, projetaram e construíram o edifício-sede do ISA (Instituto Socioambiental) em São Gabriel da Cachoeira, a 1 mil quilômetros de Manaus (AM).
Construído entre os anos 2000 e 2006, o edifício está hoje totalmente coberto por um bosque de árvores de envergadura amazônica, como tinha de ser. É quase impossível vê-lo a partir das pequenas ruas ao redor, embora esteja plantado numa colina que desemboca, em precipício, no Rio Negro.
A primeira coisa que se vê, por entre as árvores, é uma pele de tábuas envolvendo o prédio de alvenaria, alinhadas em posição horizontal e deixando frestas entre elas, como cobogós de madeira se abrindo à ventilação e ao mesmo tempo protegendo o ambiente das fortes chuvas e ventanias do lugar. E ainda permitindo que o lado dentro veja, sem ser visto, o lado de fora. Ou seja, com todas as características do elemento vazado tão representativo da arquitetura moderna brasiliense.
A pele de madeira envolve, a 1,5 metro de distância, o cubo branco de alvenaria, as varandas, os balcões e as escadas que ficaram de fora da caixa de tijolo. É uma obra de arquitetura, feita por arquitetos, mas é ao mesmo tempo uma criatura arquitetônica que se constituiu se apropriando dos saberes indígenas. É ampla, sombreada, fresca e acolhedora como uma maloca indígena, uma casa coletiva que abriga vários núcleos familiares, cada um no seu canto e todos juntos, em espaços comunitários.
Soberano, o terceiro pavimento lembra uma maloca suspensa. Todo aberto para o rio, a floresta e para os arredores da cidade, é coberto com palha de piaçava, utilizando para tanto a técnica e a mão de obra indígenas. O município abriga 23 etnias, e a cidade é uma babel de línguas autóctones, confluência de povos nativos que procuram o núcleo urbano para resolver pendências burocráticas, fazer compras, colocar as crianças na escola. (O ensino é bilíngue. Os alunos aprendem português e uma destas quatro línguas: tukano, baré, baniwa ou yanomami).
No fundo do salão de convivência do terceiro pavimento, há uma cozinha coletiva e uma pequena sala de reunião. Pouquíssimos móveis: uma mesa com quatro bancos, um conjunto de bancos e mesa do mobiliário tukano, um redário e dois conjuntos de mesa e cadeiras de vime (esses últimos, meio fora de lugar). A amplitude vazia do salão lembra as palafitas – um quase nada de móveis e objetos.
O salão do térreo, de multiuso, é forrado com esteiras de variados padrões. Tem uma LAN house gratuita para a comunidade, uma tela de bom tamanho para projeções e, ao lado, uma biblioteca de 4 mil volumes sobre o tema do ISA, índios.
Três autoras de um desses livros, Përisi, estavam no ISA no dia em que lá estive. Três artesãs yanomami, Lucilene Souza Pereira, Maria Ilda de Souza e Luiza de Lima Goes mostram, no livro, como, onde e de que modo as índias da etnia descobriram, nos anos 1970, uma fibra preta e passaram a usá-la na cestaria tão desejada no Brasil e no mundo. O livro veio para explicar que aquilo que muitos pensam ser um fio plástico preto é, na verdade, um fungo muito difícil de ser encontrado na floresta.
Quando as três artesãs me disseram seus nomes, perguntei como era o nome delas em yanomami. Elas sorriram meio constrangidas e nada disseram. Só depois fui saber que um yanomami não pronuncia seu próprio nome indígena. Só os parentes o fazem e sem que o nomeado ouça.
São assim os índios, feitos de sombras e claridades como a sede do instituto que há 25 anos cuida de conhecê-los, defendê-los e protegê-los até onde é possível.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.