Carta de uma brasiliense de coração a Regina Duarte
Com o devido respeito de que é merecedora, seguem algumas correções ao convite que V. Exª fez aos patriotas para o hasteamento da bandeira
atualizado
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Excelentíssima Senhora Secretária de Cultura, Regina Blois Duarte
Venho, por meio desta, prestar alguns esclarecimentos necessários para quem há poucos dias assumiu um cargo no mais alto escalão da República e terá forçosamente que passar parte de seu tempo na capital do país, que, como V. Exª deve saber, desde 21 de abril de 1960 foi transferida do Rio de Janeiro para o Planalto Central.
Trata-se de uma publicação de V.Exª no Instagram, no sábado (01/02/2020), convidando os patriotas a participarem da cerimônia de troca da Bandeira do Brasil em Brasília (veja vídeo).
Peço escusas por começar do começo: o evento patriótico ocorre aos domingos, e não aos sábados, como está escrito no post de V.Exª. Data vênia, acontece no primeiro domingo do mês, e não uma vez por semana, como inadvertidamente foi publicado em vossa conta na rede social acima designada.
Corrigidos, humildemente, os equívocos temporais, vamos aos urbanísticos e arquitetônicos.
Com o devido respeito, a praça que V. Exª chamou de “largo” é a Praça dos Três Poderes. E o Palácio não é o da Alvorada, é o do Planalto.
Sejamos justos. V. Exª não errou ao chamar a Praça dos Três Poderes de “largo”. Ela é sim, em sentido amplo, um largo, grande extensão urbana, livre de edificações e sem os elementos convencionais de uma praça – coreto, bancos, jardins, lagos –, embora tenha a configuração espacial de uma praça. É um espaço urbano livre “vinculado à arquitetura da mais remota antiguidade”, como descreve o arquiteto Lucio Costa no memorial descritivo do Plano Piloto de Brasília. É a representação urbanística e arquitetônica dos princípios democráticos que fundaram esta cidade. Na praça, estão as sedes dos Três Poderes da República: Executivo, Legislativo e Judiciário, cada um num dos vértices do triângulo imaginário.
Permita-me parênteses: Lucio Costa, brasileiro nascido na França, é o autor do projeto da cidade que vai abrigar V.Exª nos dias que considerar necessários. Li que V.Exª não pretende morar em Brasília. Essa é uma das garantias dos regimes democráticos, o direito de ir e vir.
Os palácios, tanto o Alvorada quanto o Planalto, são obras de Oscar Niemeyer, de quem suponho V.Exª deve ter ouvido falar. O Palácio da Alvorada é a casa presidencial e o Palácio do Planalto, o palácio dos despachos, como originalmente foi chamado. Os dois têm a mesma filiação arquitetônica: trazem a economia elegante da mais antiga arquitetura colonial que os portugueses trouxeram para o Brasil. Tem o avarandado da casa grande, de tão triste herança, pois nos remete aos 300 anos de escravidão dos negros sequestrados na África. Ao mesmo tempo, traduz a adaptação dos patrícios ao ambiente tropical brasileiro.
Embora V.Exª não tenha feito referência ao arquiteto que projetou o Mastro da Bandeira, ouso dar o devido crédito a Sérgio Bernardes. O vergalhão preto de 100 metros de altura não estava no projeto de Lucio Costa nem era desejo de Oscar Niemeyer. O mastro foi plantado ao fundo da Praça dos Três Poderes por decisão do regime militar que governou o país entre os anos 1964/1985. Não sei se já teve tempo de observar, mas o obelisco de ferro é mais alto do que as torres do Congresso Nacional. A intenção era, segundo a interpretação de vários historiadores, mandar o seguinte recado: a ditadura se impõe sobre a democracia. E se impôs até 1984/1985, quando os brasileiros foram às ruas buscar a liberdade perdida.
Encerro essas respeitosas linhas honrando alguns artistas brasileiros e algumas artistas brasileiras que têm obras em Brasília, a cidade que a acolherá pelo tempo que V.Exª e suas circunstâncias julgarem convenientes.
Eis alguns dos mais importantes: Athos Bulcão, Burle Marx, Volpi, Alfredo Ceschiatti, Bruno Giorgi, Maria Martins, Zanini, Joaquim Tenreiro, Di Cavalcanti, Portinari, Goeldi, Guignard, Frans Krajcberg, Iberê Camargo, Marianne Peretti, Sergio Rodrigues, Victor Brecheret, Tomie Otake, Rubem Valentim, Glênio Bianchetti, Vinicius de Moraes e Tom Jobim (os dois compuseram a Sinfonia da Alvorada).
A arte e a arquitetura, Excelentíssima, estão para Brasília como o mar e as montanhas estão para o Rio.
Despeço-me desejando-lhe sinceros votos de uma estada à altura de Brasília, do Brasil e do melhor que há em nós, brasileiros — a capacidade de sobreviver com alegria, arte, cultura e invenção afirmativa aos maus momentos pelos quais este país já passou e segue passando.
P.S. O horário que V.Exª informou está correto: a cerimônia é às 10h.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.