Caio e Barba, duas origens, duas histórias e um mesmo destino
Como o Setor Comercial Sul, lugar de tanta má-fama, deu identidade a dois homens que buscavam um modo de se salvar do vazio da vida
atualizado
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O Setor Comercial Sul salvou, de modos e em instâncias diferentes, dois homens de origens e percursos distintos, os dois com a mesma precisão: a do encontro com a própria identidade.
Rogério Soares, o Barba, acha que tem 48 anos e que nasceu em São Paulo. Sustenta-se nas informações da certidão de nascimento. Não conheceu nem pai nem mãe nem parentes nem aderentes. Foi criado em orfanato.
Caio Dutra, 28 anos, brasiliense do Plano Piloto, foi criado na Asa Sul. Tem pai, mãe, parentes e aderentes. Depois de quatro semestres do curso de engenharia de produção na UnB, descobriu que aquele não era o caminho que queria para si.
Mais ou menos na mesma época, os dois ancoraram dúvidas e desesperos no Setor Comercial Sul.
Barba estava devastado pelo crack. Por conta de dívidas com traficante, havia fugido da Praça do Relógio, de Taguatinga, e se mudado para o SCS, um das maiores concentrações de morador de rua do DF.
Caio havia largado a faculdade e flanava pelo Setor Comercial Sul como se o lugar tivesse algo a lhe dizer. Desde os 14 anos, o adolescente brasiliense frequentava o SCS na companhia do pai, contador que passava o dia cuidando das contas da vasta clientela de comerciantes, prestadores de serviços em geral e profissionais liberais.
Se Barba não tinha um pai nem memórias afetivas de adolescência para lhe apontar um rumo, encontrou afeto no Buraco do Tatu, a casa de quem não tem casa. (Para quem mora na rua qualquer lugar pode ser uma morada, desde que o morador assim decida). Elvira Bastos, da ONG Futuro e Esperança, reconheceu naquele homem acossado um humano querendo ajuda. E Barba teve dela a bem-querença que nunca havia tido.
Caio largou a UnB para ser um empreendedor e ativista social no Setor Comercial Sul; um ativista cultural, um influencer do mundo real, que tem deixado pegadas concretas em tão maltratado e malvisto setor. “No começo, quando tentava marcar uma reunião no setor, ninguém queria vir. Diziam que era sujo, feio, perigoso, que não tinha onde estacionar. E é sim tudo isso. Mas eu entendia que quanto mais carga negativa se colocasse, mais difícil seria de mudar as coisas. E elas aos poucos têm mudado”.
Houve um dia em que Caio virou Barba. Era um show grande, e o ex-universitário havia passado o dia labutando na produção do evento. Saiu para espairecer e encontrou um amigo, morador de rua, chateado: quis entrar na área do espetáculo e foi barrado pelos seguranças. Caio o chamou para entrarem juntos e os dois foram não apenas interceptados como maltratados. Os seguranças viram naquele homem de bermuda, camiseta suja e chinelo mais um morador de rua. Foi preciso chamar a chefia para que tudo fosse esclarecido.
O doloroso exercício da alteridade reforçou em Caio o desejo de fincar ainda mais fundo as suas pegadas no Setor Comercial.
Enquanto isso, Barba lutava desesperadamente para sair das drogas. Ficou dois anos internado, com a ajuda de Elvira Batista – que chorou por ele, o visitava, o ajudou a colocar os dentes, o tratou como um humano.
Até que chegou o dia em que Barba virou Caio. Passou a ser visto, identificado e reconhecido pelo que é e faz – e essa identidade está entrelaçada ao Setor Comercial Sul, que o esperava, dele necessitava. Depois de ser um porta-voz da cultura da Revista Traços, Barba esticou os braços, as pernas, as ideias e o desejo de dar dignidade a quem só restou o crack.
Rogério Soares tem uma lista de atividades que não cabem nesta crônica: é diretor da ONG que o acolheu, é apresentador e diretor da TV Comunitária Brasília (Barba tem incrível facilidade com as novas tecnologias). E desenvolve no Setor um projeto de redução de danos e de promoção da dignidade das pessoas em situação de rua.
O SCS foi o território que traçou horizonte para esses dois homens tão diferentes e tão geograficamente próximos. De lá para cá, a cidade reconhece em Caio e em Barba dois espécimes humanos forjados na diversidade, nas dificuldades e na riqueza urbana do Setor Comercial.
Caio: “O Brasil é um dos países mais miscigenados do mundo e Brasília é uma cidade construída por todos os estados do Brasil e o Setor Comercial Sul é o epicentro de Brasília. No Setor Comercial Sul, sou alguém, represento alguma coisa para a sociedade, tenho alguma importância”.
Barba: “O Setor Comercial Sul representa a minha vida. Tive aqui como minha casa, como morador de rua, porque aqui é um lugar que tinha tudo o que eu queria: álcool, droga, dinheiro, comida. Representa a minha vida porque foi daqui que eu saí. Pra mim significa ressurreição”.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.