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Bingo do Boi, um jogo para matar a saudade de quem tem um pé na roça

Brasília goiana: num domingo à tarde, mais de 200 pessoas ocuparam o gramado no meio da avenida para disputar um garrote de 100 kg

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Conceição Freitas – Crônica bingo do boi
1 de 1 Conceição Freitas – Crônica bingo do boi - Foto: Conceição Freitas/Metrópoles

No meu CEP, o frete mais barato e prático é o do carroceiro. Eles passam os dias percorrendo as quadras, levando entulho, levando e trazendo móveis e pequenas mudanças. Dias atrás, um deles me cobrou R$ 10 (apenas 10 reais!) para levar uma cama velha. Quando entreguei o dinheiro, ele contou que era a quantia certa para comprar uma cartela do Bingo do Boi.

O bingo foi no domingo passado (19/05/2019), numa distribuidora de bebidas na QE 44, no Guará II. O canteiro central, largo, gramado e generoso, estava lotado de famílias em mesas e cadeiras de plástico. Num pequeno palco, uma dupla sertaneja se apresentava, os cachorros cheiravam o churrasquinho, as crianças inventavam distrações e, ao largo, quatro carroceiros também esperavam o bingo.

Não era só a cerveja e a música, era o boi que atraía aqueles urbanos. O que fazer com um boi? Eu me perguntava enquanto comprava a minha cartela. O boi não estava lá – era um garrote de 100 kg, informou o cantor sertanejo. Não era uma tevê 42 polegadas, não era um computador, uma moto, uma bike – era um boi!

Havia mais de 200 pessoas no bingo, isoporzinhos, toalhas no chão, cadeiras de roda e muito carro – tudo por causa de um boi numa cidade-satélite a 15 km do Plano Piloto e de seus monumentos, que quiseram mostrar ao mundo que o Brasil era moderno e tecnológico.

O Bingo do Boi é o Goiás que se revela aos brasilienses. É o Brasil que teve uma das mais abruptas migrações do campo para a cidade. Como bem disse o arquiteto e urbanista Benny Schvasberg, “o Brasil, da década de 50 em diante, viveu um processo alucinado de urbanização. O que países da Europa e Ásia viveram em um século ou mais, nós vivemos em algumas poucas décadas” (Seminários Nacionais de Política Urbana e Ambiental, 2016/2017).

Temos um pé no urbano e o outro no rural. No quadradinho, esses dois pés estão grudados uns nos outros, tão difusa e próxima é a separação do que é cidade e do que é campo. E a influência do modo de vida goiano é muito mais forte do que muitos de nós gostaríamos que fosse. Estamos dentro de Goiás e Goiás está dentro de nós. Foram os goianos (e não os nordestinos, como o senso comum nos faz acreditar) os que mais participaram, com a força de trabalho bruta, da construção da cidade moderna.

“O boi, o cavalo e a égua tinham importância fundamental no labor dos tempos idos”, escreveram Lena Freitas e Nancy Helena Silva em Fazendas Goianas, artigo publicado em Ateliê Gráfico, revista da Universidade Federal de Goiás. O boi era transporte de tora, era usado na lida na roça, no engenho de cana. Levava gente e tralhas para as festas na igreja do povoado, as festas do Divino e da Abadia.

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Boiadeiros venciam sertões, traziam e levavam fortunas, inspiraram Guimarães Rosa, Bernardo Élis e tantos outros. Até aquela última viagem ao sertão de Goiás, quando o boiadeiro largou de comprar boiada porque seu parceiro de viagem, o Chico Mineiro, foi morto por um desconhecido. E quando o boiadeiro olhou o documento, foi de cortar o coração: o Chico Mineiro era seu legítimo irmão.

Alexandre, um rapaz negro de pouco mais de 20 anos, ganhou o boi do bingo. Nem bem se assegurou da vitória, anunciou que queria vender o garrote. Pelo preço da arroba, a unidade de medida de peso do boi, ia faturar uns 900 contos.

Eu fiquei por “dois cachorros do padre”, o número 55 (no cantar do bingo, muitos números têm identidade própria).

Brasília é a síntese do Brasil, como dizia o querido Paulo Bertran. De um Brasil fortemente goiano.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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