Antes, os miseráveis. Agora, à deriva, 10 mil ricos e a Covid-19
Os oceanos sempre foram metáfora para a aventura humana. Desta vez, teremos a chance de escolher entre o pior e o melhor que há em nós
atualizado
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Coube a nós, os 7,7 bilhões de humanos que aqui estamos – até quando nos for possível — testemunhar uma mudança de era, daquelas que a gente estuda na escola. O neolítico, o paleolítico, a revolução agrícola, a idade antiga, a idade média, a idade moderna, a idade contemporânea e o que virá, a saber.
Aquele ou aqueles deuses que de algum modo e de algum lugar acompanham a aventura humana na Terra por certo estão nos dando algumas aulinhas de humanidade, e com muita ironia, quase cinismo. Uma das aulas é a de que pelo menos 10 transatlânticos estão à deriva nos mares do mundo, com quase dez mil passageiros, presos uns aos outros, trancafiados em cabines sem ventilação natural, convivendo inescapavelmente com a Covid-19. A maioria europeus e americanos ricos ou, pelo menos, de classe média alta.
À deriva, neste século 21, estiveram (ou estão até agora, não se sabe) milhares de homens, mulheres e crianças que tentaram fugir das guerras e da fome se lançando ao oceano – não em resorts flutuantes, de até 15 andares, mas em barcos toscos como aqueles que levaram o homo sapiens a se espalhar pelo mundo há 45 mil anos (quando chegara à Austrália, segundo Yuval Noah Harari).
Um dos navios à deriva, vagando pelos mares sem que nenhum país consultado os aceite, é o Zaandam. Na sexta-feira passada (27/03), quatro dos 1.243 passageiros haviam morrido e outros dois testaram positivo para a Covid-19. Confinados com o coronavírus, estão americanos, canadenses, australianos e britânicos. Mesmo os navios sem sinal da doença estão impedidos de atracar em terra firme.
Passageiros que conversaram com o jornal The Guardian relatam um confinamento dramático: presos em cabines, recebem três refeições diárias deixadas do lado de fora. Outros navios já têm ração suficiente apenas para distribuir porções uma vez ao dia. A empresa dona de um dos navios enviou outro navio com tripulantes, suprimentos e kits de teste de coronavírus para ir ao encontro da embarcação à deriva.
Depois de ser retirado do navio doente para o navio saudável, um dos passageiros comentou em postagem no Facebook: “Eu preferia ter um helicóptero, mas os mendigos não podem escolher” – com escárnio mesmo depois de ter visto a morte de perto. A passagem mais barata, para curto percurso, em navios de cruzeiro, é de R$ 3 mil e a mais cara, em percurso mais longo, R$ 190 mil.
Para dar uma real ao delírio: as 736 milhões de pessoas extremamente pobres do mundo ganham, cada uma, em média R$ 200 por mês, segundo relatório do PNUD/2019, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.
Embarcações sempre estiveram na imaginação humana como metáfora da terrível aventura humana, seja na ficção (Moby Dick, por exemplo) ou na realidade, com o Titanic, o mais perfeito navio do mundo e seu naufrágio seletivo do qual só os ricos se salvaram. Talvez um deles tenha dito ao chegar em terra firme – “Eu preferia um helicóptero…”.
Quando tudo isso passar, e vai passar porque tudo passa, contados os mortos, abertas as portas, renascidas as cidades, teremos uma nova era. Qual será, ainda não sabemos. O que já se sabe é que nunca mais o mundo será o mesmo. Podemos responder com o cinismo do passageiro do transatlântico ou com a força serena de Ishmael, de Moby Dick. Depois de sobreviver ao naufrágio do Pequod, voltou à terra para contar do que é capaz a ambição. Se aprendermos a lição, começaremos uma era melhor (ou menos pior) do que essa. Por algum tempo, pelo menos.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.