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Ainda Estou Aqui é uma lição de humanidade: ainda estamos aqui

Ainda Estou Aqui quer dizer coisas demais. É a vida se afirmando a despeito das circunstâncias mais cruéis

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Ainda estou aqui
1 de 1 Ainda estou aqui - Foto: Divulgação

Não ia ao cinema há mais de ano, pra quê, se mais dia menos dia tudo o que me interessa vai estar na tevê? Cedi, porém, ao chamamento de Fernanda Torres aos brasileiros e brasileiras – que fôssemos ver Ainda Estou Aqui na tela gigante. E como é gigante a tela do cinema! Quase havia me esquecido.

Entrei no foguete espacial e fui levada para a escala astronômica do cinema. Assisti à primeira sessão em Brasília, às 13h dessa quinta-feira (7/11). Éramos não mais de 20 pessoas, nós os que pudemos ir ao cinema num dia de semana começo de tarde chuvosa.

Quando o letreiro final começou a correr na tela, tentei me levantar – eu que nunca tenho paciência para ler os créditos do filme. Cadê pernas? Estava estatelada na poltrona, como um astronauta depois de ter visto a imensidão do universo de estrelas radiantes e buracos negros.

As pernas voltaram, mas o espírito continuou em sobrevoo. Ainda precisei me sentar num banco de shopping, o espelho de uma loja me mostrando o quanto eu não estava ali. Estava em Walter Salles, em Fernanda Torres, no Rio de Janeiro dos anos 70 e na aparição soberana de Fernanda Montenegro.

Em casa, corri pra o celular. Comprei o e-book de Ainda Estou Aqui, o livro de memórias de Marcelo Rubens Paiva. Devorei 260 páginas em uma noite e uma madrugada. De todas as faíscas lancinantes do foguete, a que mais me atarantou foi o título: Ainda Estou Aqui.

Ainda Estou Aqui quer dizer coisas demais. É a vida se afirmando a despeito das circunstâncias mais cruéis. No livro, a frase aparece na penúltima página (antes da reprodução do processo sobre as circunstâncias da morte de Rubens Paiva). Eunice Paiva, já em estágio quase avançado do Alzheimer, quando tomada por um turbilhão de emoções, passou a repetir: Ainda estou aqui, ainda estou aqui.

Ainda estamos aqui, tanto estamos que Walter Salles produziu uma obra-prima, que me fez tirar as costas do espaldar da cadeira e ficar tesa diante daquele suceder de acontecimentos que surgem quase travestidos de desacontecimentos, e sem abdicar de relatar duramente o que nos aconteceu, ao Brasil, durante a ditadura militar.

Como Fernanda Torres tem dito, Eunice Paiva é uma mulher extraordinária. Escrevo com o verbo no presente, porque ela Ainda Está Aqui. A despeito de ser uma magistral, ao mesmo tempo sutil e feroz (como pode?) denúncia do que é capaz uma ditadura, o filme de Walter Salles é uma elegia à humanidade.

Ainda estamos aqui.

Ao mesmo tempo em que Eunice repete, emergindo da confusão mental, que ainda está aqui, nós também ainda estamos aqui, mesmo com tudo o que aconteceu, acontece e pode acontecer.

Há em Eunice Paiva uma força solitária que pra mim soa inimaginável. Como ela deu conta? O único filho homem, Marcelo, conta no livro que a mãe só chorava quando estava sozinha no quarto. Chorava só mas não estava só. Não esteve inteiramente só nem quando passou doze tenebrosos dias na mesma prisão que o marido.

No filme, aparece rapidamente um militar encarregado de levar comida para a prisioneira Eunice. Ele sutilmente manifesta seu desacordo com o que está acontecendo. No livro, essa cena é mais detalhada. Alguém lá dentro se arrisca a se solidarizar com Eunice, gesto do qual ela jamais se esqueceu, segundo relata Marcelo no livro. Gesto que ela relembrava sempre que podia, e quase nunca falava dos horrores que viu e viveu naqueles doze dias.

Cada um de nós que viu ou que verá o filme, vai ter o próprio Ainda Estou Aqui. O meu é esse: Ainda estamos aqui. Somos absurdamente solitários mas precisamos absurdamente uns dos outros, especialmente em situações-limite, como as que Eunice e seus cinco filhos viveram.

Ainda estamos aqui.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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