Acredite: embora maltratado, o Setor Comercial Sul é um luxo urbano
Fosse um outro Brasil, uma outra Brasília, um outro tempo, o SCS seria a Champs Élysées que tanto inspirou Lúcio Costa. Está tudo ali, pronto para ser aproveitado
atualizado
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Sentada num restaurante simpático, com as portas largas abertas para um pátio verdejante e ensolarado, de frente para um edifício do Lelé, e comendo uma língua suprema — língua de boi ao molho grego, dizia a plaquinha do bufê –, sentada nessa epifania urbana brasiliense, me perguntava que porcaria de complexo de vira-latas é esse que nos cega para nossas grandezas e preciosidades?
O lugar onde eu estava, na sexta-feira passada, 1º de junho, é o setor mais difamado do Plano Piloto, o Setor Comercial Sul. Há razão na má-fama. É um lugar inseguro e caótico, mas é um senhor setor, um setor cabuloso, como diz a moçada que vem ocupando o SCS há alguns anos. É o setor menos setorizado, mais misturado da maquete moderna. Até a Rodoviária perde pra ele, porque a Rodô é de quem não tem carro. O SCS é de duas pernas, mas também é de duas e quatro rodas.
É um dos raros setores, e o maior dentre eles, onde Brasília consegue ser urbanamente democrática. No SCS, as pessoas cruzam umas com as outras, o empresário ombreia com o morador de rua, o camelô com o funcionário público, o artista plástico com a vendedora de marmita de R$ 4,99, o frequentador de galeria de arte com o balconista do intenso e miúdo comércio local.
O Setor Comercial Sul são muitos: o do dia, o da noite, o dos dias úteis, o do fim de semana; o mais próximo da W3, o colado no Eixinho de cima; o dos escritórios, o dos sambas, o das baladas underground; o dos craqueiros, o das putas; o das galerias, o das praças; o da superfície, o dos subterrâneos; o das manifestações, o dos espetáculos; o do comércio com e sem alvará.
Fosse um outro Brasil, uma outra Brasília, um outro tempo, o Setor Comercial Sul seria a Champs Élysées que tanto inspirou Lúcio Costa ou a La Rambla ou qualquer outra área urbana européia de intenso convívio coletivo. Está tudo ali, pronto para ser ocupado, aproveitado.
O SCS é um luxo: um retângulo que vai do Eixinho até a W3, cercado nas laterais pelo Setor Hoteleiro, Setor de Diversões, Setor Hospitalar. Pequenas praças internas e uma sucessão de escadarias que vêm num descendo desde a W3 até o Eixinho. (Em alguns trechos já há rampas de acessibilidade).
Na parte baixa, calçadas que entram e saem dos pilotis dos prédios geminados e se espraiam sob o Sol. Os edifícios são uma galeria da arquitetura moderna dos primeiros tempos de Brasília. Lá, estão projetos de Oscar Niemeyer (Ed. Denasa e Ed. Oscar Nieyemer) e os belíssimos, elegantes e coloridos edifícios Camargo Corrêa e Morro Vermelho, projetos do Lelé com paisagismo de Alda Rabello. O mestre do pré-moldado e da tecnologia surge em estruturas mais leves e lúdicas. Duas torres modernas e perfeitamente contemporâneas.
Sobre o SCS, a arquiteta Sylvia Ficher escreveu: “Uma das características mais marcantes dessa fase de sua obra (de João Filgueiras Lima) é o estudo de novas técnicas de montagem e fixação das peças pré-moldadas e o emprego de elementos espaciais nas fachadas, que servem tanto de vedação como quebra-sol”. Ali começou o casamento do Lelé com o Athos: são deste último os painéis decorativos do térreo dos dois prédio, o estudo das cores das fachadas e o desenho dos azulejos, como informa Sylvia Ficher.
O Setor é do pedestre e teria de ser ainda mais. Há recantos verdes muito bem cuidados e também há uma galeria caótica, com vão livre em pilotis, e bugigangas esticadas no chão. Na sexta-feira (01/06/2019), perto do meio-dia, surgiu um casal com sacolas imensas de roupas que, segundo anunciavam, eram peças novas vindas da Riachuelo, C&A, Renner e Marisa. Vinte reais cada uma, com exceção das jaquetas, R$ 40. Em minutos, o amontoado de roupas no chão estava cercado por uma ávida freguesia.
O Setor é um acontecimento contínuo, é o lugar onde Brasília finalmente se mistura, mas não está na Wikipédia, tamanho o preconceito. Lá, estão o SDS, o SCN, o SBS, o SIG, a W3, a sopa de letrinhas, menos o Setor Comercial Sul. Mas já está na agenda cultural da cidade, no exercício diário de inclusão dos moradores de rua. Só ainda não chegou ao coração do brasiliense. Ele não sabe o que está perdendo.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.