metropoles.com

A rua, a cidade e as histórias que contamos para nos salvar

Nenhuma cidade deveria existir sem ruas, assim como ninguém pode existir sem contar a si mesmo a própria história

atualizado

Compartilhar notícia

Google News - Metrópoles
Ilustração gerada por IA/Metrópoles
Ilustração colorida de rua movimentada, cheia de pessoas e com uma feira, gerada pelo Copilot, IA da Microsoft - Metrópoles
1 de 1 Ilustração colorida de rua movimentada, cheia de pessoas e com uma feira, gerada pelo Copilot, IA da Microsoft - Metrópoles - Foto: Ilustração gerada por IA/Metrópoles

Dizem que Le Corbusier, o arquiteto do modernismo, certo dia de verão em Paris saiu para uma caminhada ao pôr-do-sol, quando se assustou com o caos do trânsito. “…foi como se o mundo tivesse subitamente enlouquecido…”. Era 1924, os carros já dominavam as avenidas das grandes cidades e aquilo perturbou o franco-suíço. Foi então que ele começou a pensar em proteger o pedestre do confronto com a máquina e liberar os carros para a potência máxima. E assim criou vias exclusivas para as rodas e acabou com a rua tal qual a conhecemos. Quem conta essa história é Marshall Berman, em Tudo o que é sólido desmancha no ar (Companhia das Letras, página 160).

A coisa foi levada tão a sério em Brasília que lá se foi a rua bordejada de casas e serviços em geral, tudo misturado e alinhado em calçadas cheias de gente. A sorte é que as cidades costumam ser desobedientes e as ruas acabaram ressurgindo de um jeito meio desajeitado, o que é próprio das ruas, com o que de melhor elas têm: o vaivém dos pedestres, a mistura de gentes, a floresta humana batendo perna. Toda cidade-satélite de Brasília tem pelo menos uma rua ao modo convencional e geralmente é a rua ou avenida do comércio.

A rua perto de onde moro há mais de 15 anos é um acontecimento contínuo: distribuidora de bebida colada na igreja evangélica colada na farmácia. Padaria, mercadinho, papelaria, barbeiro, boteco, brechó de móveis, lojinhas de roupa, de açaí, jantinha, cachorro-quente, pizzaria, salão de beleza, esmalteria – não tem pet shop ainda. E no meio disso tudo o discretíssimo porém indisfarçável jogo do bicho.

É muito estreita a rua perto de casa e nem nome tem porque a rigor nem rua é. São quadras perfiladas uma ao lado da outra e cortadas por um asfalto remendado por onde passam carros, caminhões, carroças, motos, bikes – e pedestres.

O dia começa muito cedo na rua perto de casa. Antes das seis já tem gente subindo em direção ao ponto de ônibus. Por volta da sete, magotes de adolescentes passam a caminho da escola pública. Os cabelos! Como são estilosos! O corte escultural dos meninos e as tranças nas meninas. Uma gramática de cores, cachos, amarrações, grafismos – um desfile de identidades adolescentes se constituindo.

As moradias ficam no primeiro e no segundo andar da rua perto de casa. De uma delas, de vez em quando ouço uma voz feminina se queixando em voz alta. Só consigo ver os braços eloquentes. A moradora parece falar ao vento, ao dia, ao Sol, a nenhuma pessoa específica.

O moço da barbearia trabalha todos os dias, de segunda a segunda. Cedinho, limpa o pequeno salão espelhado como se fosse a sala de sua casa. Um vidrinho com sal grosso está sempre ali, bem na entrada. O moço da casa de bolo joga um copo d’água no vaso de plantas que enfeita a porta do estabelecimento.

A rua perto de casa tem pedestres empurrando a própria morada – os que vivem na rua com seus carinhos de supermercado. Eles costumam se juntar numa esquina, bem cedinho, pra conversar num banco formado pelo desnível da calçada com o asfalto. Morador de rua adora contar vantagem – toda a gente humana gosta muito de enumerar suas conquistas reais ou imaginárias, mas entre os moradores é um hábito contumaz.

Criam histórias que são elas mesmas o corpo de cada um deles. São aventuras mirabolantes, nas quais o contador da história é o herói ou alguém que conviveu com um herói, um poderoso de quem foi amigo ou, no mínimo, merecedor de atenção.

No meio da rua, sem parede nem teto, é preciso construir uma casa imaginária, feita de sonhos, invenções, delírios, histórias contatadas pra si mesmo e para o outro. É preciso sempre inventar um sentido, é o que nos iguala, os que têm e os que não têm um teto onde se abrigar.

Nenhuma cidade deveria existir sem ruas, assim como ninguém pode existir sem contar a si mesmo a própria história. Mesmo que no íntimo de cada um haja segredos incontáveis, e é importante que haja, a rua é um livro aberto de vidas sendo cotidianamente contadas.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

Quais assuntos você deseja receber?

Ícone de sino para notificações

Parece que seu browser não está permitindo notificações. Siga os passos a baixo para habilitá-las:

1.

Ícone de ajustes do navegador

Mais opções no Google Chrome

2.

Ícone de configurações

Configurações

3.

Configurações do site

4.

Ícone de sino para notificações

Notificações

5.

Ícone de alternância ligado para notificações

Os sites podem pedir para enviar notificações

metropoles.comNotícias Gerais

Você quer ficar por dentro das notícias mais importantes e receber notificações em tempo real?