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A mãe mais maternal que conheci quase não dava conta de si mesma

Duas mães sem marido, uma delas viúva e a outra, mãe solo, suponho. Além de serem vizinhas, e sós, cada uma tinha uma única filha

atualizado

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Arquivo pessoal
Foto colorida da escultura Mãe Preta, que mostra uma figura feminina amamentando um bebê
1 de 1 Foto colorida da escultura Mãe Preta, que mostra uma figura feminina amamentando um bebê - Foto: Arquivo pessoal

Vistas de longe ou com o olhar ácido dos juízes da vida alheia, elas eram dois exemplos extremos de maternidade. Eram vizinhas de cortiço – uma fileira de pequenos cômodos num mesmo lote. Em cada cubículo morava uma família.

Duas mães sem marido, uma delas viúva e a outra, mãe solo, suponho. Além de serem vizinhas, e sós, cada uma tinha uma única filha. Terminavam aí as semelhanças.

A viúva sobrevivia do pouco dinheiro que o marido havia deixado. Cafuza bonita, casinha limpa, chão de cimento vermelho sempre lustroso, tapete na porta da sala. Parecia muito mais jovem do que os 40 anos da certidão de nascimento.

A outra, mulher de pele preta, tanto podia ter 40 ou 50 ou 60 anos. Me lembro dos pés de dedos tortos e unhas cravadas na pele, o som do chinelo arrastado, único grito da vida doente e miserável. Não sei de que dinheiro elas viviam.

A Cafuza sorria sorriso de dentes perfeitos, cabelos sempre arrumados a bobies, unhas sempre pintadas.

A Preta quase não tinha dentes. Sobravam dois cacos no maxilar superior e uma meia dúzia torta e cinzenta, no inferior.

Os vestidos da Cafuza eram acinturados e iam até pouco acima do joelho. Os da Preta tinham corte reto e terminavam no meio da perna, uma ponta mais comprida que a outra, como se a modelo estivesse capengando de cansaço no cruel desfile da vida.

Quando a filha da Cafuza chegava da escola, fazia algum mexido com o que tinha nas panelas, comia correndo e ia se sentar na porta do corredor do cortiço. Começava a parte afetuosa do dia.

As duas filhas das mães passavam boa parte da tarde trocando frases soltas como se buscassem uma na palavra da outra um sentido comum para a estranha vida das duas, até que a noite anoitecia e cada uma voltava para a solidão das mães.

Sempre que eu ia visitar a minha amiga, ficava enfeitiçada pela figura da mãe Preta. Ela nunca olhava nos meus olhos, suponho que nos olhos de ninguém. Àquele tempo, já bebia álcool da garrafa que escondia em algum canto do quarto caótico onde vivia – um fogão de uma boca só, um pote de barro, dois ou três pratos esmaltados, dois ou três copos de alumínio, alguns talheres antigos e um amontoado de panos sobre a cama de solteiro.

Mãe Preta sempre tinha algum alimento pronto para a filha: um biscoito frito, um pão com banana, um abacate, um prato de arroz, feijão e ovo. Nunca fiquei sabendo quem era o pai da minha amiga, ela não dizia e eu não perguntava. Imperturbáveis segredos.

A filha da Mãe Cafuza tinha inveja da amiga ter uma mãe tão maternal.

Depois que me mudei da Rua 233, nunca mais tive notícia das duas. E aquela mãe arrastada ficou em mim como uma mãe mítica.

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