A história de amor de Ernandes e Mariana, mais bonita não há
Eles não conversavam muito. Ele, silencioso por natureza. Ela, um tanto confusa e irritadiça. Só se acalmava quando estava perto de Ernandes
atualizado
Compartilhar notícia
Andarilhos seguem a correnteza das estradas. Os passos ritmados, a paisagem vagarosa, o sangue veloz, o barulho dos carros e caminhões, a vida sob o tempo. Um viver sem espera. Um ir ao encontro de não se sabe o quê. Ir, tão somente.
Ernandes passou quase toda a vida andarilhando. Filho de pai alcoólatra, 14 irmãos, aceitou o convite de um amigo para sair mundo afora. Adolescente, deixou o Rio e pegou o rumo de Porto Alegre, pelas margens das rodovias. Logo, o parceiro virou na encruzilhada, e Ernandes ficou só com as próprias pernas. Chegou à fronteira com o Uruguai, ganhando algum trocado na diária da roça, ajudando caminhoneiro em apuro, lavando banheiro em posto de gasolina.
Nada, porém, o prendia. Era guiado pelo desejo semovente de nunca estar no mesmo lugar.
Numa das andarilhagens, de São Paulo para o Rio, Ernandes mirou uma moça miúda, cambaleante, no mesmo lado da estrada, como se estivesse vindo ao seu encontro. Pelas roupas andrajosas, era como ele, um peregrino do nada. Mais de perto, viu o rosto de traços suaves, os longos cabelos cacheados. Mais de perto ainda, percebeu que a menina sangrava pelas pernas.
Os dois pararam um em frente ao outro e a garota pediu-lhe comida. Ernandes cedeu o almoço à estranha, um pão com carne guardado havia muitas horas. A moça parecia não se dar conta do sangue que escorria pelas pernas ou talvez a fome fosse maior que o sangramento. Chamava-se Mariana, tinha 28 anos.
Os dois continuavam de pé à margem da Via Dutra, à época uma rodovia recém-inaugurada. A estranha, então, perguntou ao estranho: “Posso ir com você?”. Ele fez que sim com a cabeça, e ela voltou pelo mesmo caminho que tinha vindo. O sangue continuava a fazer dois riozinhos do lado de dentro das pernas da moça.
Desde esse encontro na Dutra, os dois nunca mais se deixaram. Eles não conversavam muito. Ele, silencioso por natureza. Ela, um tanto confusa e irritadiça. Dizia que tinha nascido em Piraju, Minas, e que havia sido expulsa de casa porque jogava pedra nos outros. Só se acalmava quando estava perto de Ernandes. Longe dele, ela voltava a atirar pedra. “Até hoje”, ele me disse em meados de 2005.
Pelas contas que fiz a partir das informações imprecisas de Ernandes, eles se conheceram por volta de 1956. Pouco depois, tiveram notícia de que uma nova capital do Brasil estava sendo construída no Goiás. Seguiram as veredas do Planalto Central e participaram da construção da cidade. Não consegui saber qual o ofício de Ernandes. Tiveram um filho, Sebastião, que à época da entrevista cumpria pena na Papuda. “Ele era igual a nós, mas os colegas fizeram a cabeça dele e ele ficou atrapalhado da ideia.”
Quando os encontrei pela primeira vez, os dois estavam nas proximidades do Hospital de Base. Mariana estava dentro da carroça; ele, trazendo um galão de água. Quem andou por aquelas paragens entre 2000 e 2010 pode tê-los visto. Uma senhorinha dentro de uma carroça de catador, acomodada sobre papelões e cobertores, e puxada por um senhorzinho.
Todo o patrimônio de Ernandes e Mariana cabia na carroça: duas cadeiras de plástico, uma garrafa térmica, um galão de 10 litros de água, algumas peças de roupa, dois chinelos, uma lona e duas bonecas velhas. Quando Ernandes precisava deixar Mariana sozinha, ela se distraía com as bonecas e esquecia as pedras.
Foi assim durante mais de 10 anos, transitando entre o estacionamento do Hospital de Base, a Rua das Farmácias e o Setor Comercial Sul. Quando começava a anoitecer, Mariana se agitava. Precisava voltar ao ponto de partida, às proximidades do hospital, onde uma gata recém-parida a aguardava. “Ela dá leite pra gata, pra gata criar leite para dar para os filhotes”, Ernandes me contou com orgulho de quem relata uma grande história.
Numa de nossas conversas, Ernandes avisou: “O sol está de matar, vamos embora mais cedo”. E Mariana repetiu: “Vamos embora mais cedo”. Foi tudo o que consegui ouvir dela, a repetição do fim de uma frase de Ernandes.
Algum tempo depois, encontrei Ernandes sozinho, no lugar de sempre. Não quis conversa comigo. Funcionários dos quiosques em frente ao Eixinho Oeste me contaram que ela havia morrido e que ele andava muito zangado. Depois, ele sumiu. Andarilhou.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.