A Estrutural é uma cidade teimosa, resiste a tudo, ao começo e ao fim
Área foi ocupada ainda nos idos dos anos 1960. Desde então, cresceu e sobrevive mesmo após o fim do Lixão que movimentou a economia local
atualizado
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Onze horas da manhã de domingo 7 de abril. Nuvens cinzentas, baixas e gordas anunciam chuva próxima, mas da feira livre da Estrutural ninguém arreda pé. Não é fácil estacionar nas proximidades. Aumentou muito a quantidade de barracas, a diversidade de ofertas e o número de carros. Apesar dos tempos difíceis, há sinais de prosperidade na mais famosa favela de Brasília, embora não seja mais uma favela, mas por certo é a que primeiro vem à cabeça do brasiliense.
A Estrutural tenta sobreviver ao fim do Lixão, matéria-prima de onde nasceu, se debateu, teimou e se consolidou. Já não é mais uma invasão, compõe a região administrativa de número 25. Com a Cidade do Automóvel, faz parte do SCIA, uma daquelas siglas chatas que só enfeiam um texto.
Surgiu no início dos anos 1960 com algumas dezenas de catadores. Inchou, nos anos 1990, numa briga política entre Roriz e Cristovam. O primeiro queria, como sempre, trocar lote por voto. E o segundo se sustentou em legítima defesa do meio ambiente. Houve guerra, quem venceu foi a Estrutural.
A cidade tem hoje os equipamentos urbanos essenciais, água encanada, luz elétrica, asfalto, avenida com duas pistas e canteiro central, balão com paisagismo frondoso, edifícios de dois e três andares (como gostam de pastilhas e de tons vermelhos, roxos).
E uma feira que se desdobra no centro da cidade. É só chegar, esticar o pano e se acomodar. Funciona todos os dias, mas aos domingos ela vira as esquinas próximas.
De tudo um pouco
Lembra as feiras do começo de Brasília: hortifrutigranjeiros, grãos, galinha, ovos, cachaça artesanal, peças usadas de bicicleta, computadores, eletrodomésticos e eletroeletrônicos também usados, celulares, celulares, celulares, tapetes, roupas, almofadas, artesanato, brechós, panelas, brinquedos, tudo junto e misturado.
Tudo lá é mais barato: 10 pães de queijo por R$ 1; um par de sapato usado por R$ 7, de criança, por R$ 5; almoço com suco por R$ 9,99; 4 metros de tapete de tear por R$ 30 (comprei!).
A capital do país produz o dobro de lixo que as demais capitais. Cada brasiliense descarta, por dia, 2kg de coisas que não lhe servem mais. A média nacional é de 1 kg. A montanha de rejeitos até hoje (e por muito tempo) produz metano com capacidade para causar uma hecatombe na cidade. O gás explosivo mantém-se devidamente controlado com chamas que escapam de mais de uma centena de chaminés invertidas – manilhas subterrâneas com a boca para fora.
De algum modo, a feira repete o efeito das chaminés do Lixão. Impede que a Estrutural exploda. Daí talvez se explique o crescimento das barracas e dos panos esticados no chão. Há um ano e quatro meses, os restos da riqueza de Brasília já não caem dos caminhões. Os mais de mil catadores do antigo Lixão tiveram de procurar alternativas de sobrevivência – 67% deles eram mulheres, 87% pretos (incluindo os que ainda se consideram pardos).
Nesses meus 35 anos de Brasília, sempre volto à Estrutural. Há nela uma força que me atrai, um perigo que me desafia. Ninguém se esconde na Estrutural. Como os lotes são muito pequenos, as casas são forçosamente geminadas. A rua é a calçada, o corredor, o quintal. É a chaminé das casas sem respiro.
Tem sempre gente na rua, menino, menina, cachorro, cachorra, gato, gata, cavalo, égua. E bicicleta. A Estrutural é a cidade com mais bikes por habitante no quadradinho – 40% das casas têm pelo menos uma bicicleta. Lá é meio de transporte. E 38% das moradias têm carro.
A Estrutural é o Brasil que o Brasil renega. E ela está só a 15 km do Palácio do Planalto, pouco mais de meia hora de bike. Ela não sabe a força que tem. Quem sabe um dia?
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.