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A aventura de contar a vida de alguém: o impossível depois da curva

Fazer uma biografia é, de saída, uma impossibilidade, posto que somos todos irredutíveis a 200 páginas ou a 500 ou a mil

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Arte ilustrativa de homem com cabelo castanho, terno branco e gravata preta - Metrópoles
1 de 1 Arte ilustrativa de homem com cabelo castanho, terno branco e gravata preta - Metrópoles - Foto: Divulgação

Tem um impossível me esperando depois da curva. Até sei quem é, mas não sei como ele é nem o quão impossível é. Desacelero, paro, entro na primeira portinha e peço um café. Depois sigo, porque não tem mais como voltar. Penso no que está para além da curva da estrada – “talvez haja um poço, e talvez um castelo”, diz Fernando Pessoa. Pode ser que o inalcançável tente fugir, fugidio que é.

Fazer uma biografia é, de saída, uma impossibilidade, posto que somos todos irredutíveis a 200 páginas ou a 500 ou a mil, tantas as contradições, tantos os vazios entre acontecimentos, tantas as perguntas sem resposta, tantas as pontas soltas, tantas as pessoas que habitam uma só, tão incerta é a memória. O que se tenta fazer é uma aproximação mais ou menos crível, mais ou menos inteligente, mais ou menos próxima do que de fato aconteceu. E o que de fato aconteceu?

Foi isso, por enquanto, o que aprendi sobre a aventura de contar a história de uma vida, essa existência que aparentemente cabe num corpo. Quem se arrisca a escrever uma biografia tem de forçosamente passar por Orlando. Sabe-se que o biografado fictício de Virginia Woolf atravessou 350 anos de história do mundo, viveu várias vidas, mudou de país, mudou de sexo, teve filho, juntou-se a ciganos, a poetas. Que era cândido e ao mesmo tempo sombrio e que tudo ao redor dele refulgia – e como a genial VW brinca com descrições luminares das cores e da sonoridade das palavras e com o ritmo da linguagem! E como lida com o tempo, essa linha imaginária esticada no espaço e pontuada de fatos históricos e de silêncios insondáveis. E ri das biografias.

Antes que eu me perca em Orlando, volto para o Brasil de meados do século XIX, época em que viveram os avós do meu biografado. Quanto de nós está em nossos ancestrais, camadas de vidas encadeadas umas às outras de tal modo que nem nos damos conta?

O meu biografado se chama Lucio Costa, nasceu na França, mas é carioca, inacreditavelmente carioca – uma primeira baita surpresa para essa biógrafa em estado de nascimento.
Esse zoom prolongado e intenso, largo e fundo, é também um risco. Tem biógrafo que ao fim da aventura tem dificuldade para voltar a si mesmo. O ser humano é um abismo inebriante – e se o escolhido for um cara que inventou a cidade onde vivo há quase 40 anos, pensou fundamente sobre seu país, desde os tempos coloniais ao período moderno, e que – como Orlando também de certo modo viveu 350 anos — a aventura já me deixa desassossegada: o que haverá depois da curva?

Cada um de nós é, ao fim e ao cabo, as histórias que conta sobre si mesmo. O meu biografado deixou uma autobiografia, as 646 páginas de Registro de uma vivência (Editora 34/Edições Sesc/2018). Com o mapa-múndi de Lucio Costa nas mãos, recorto meu trajeto para tentar cartografar o pensamento e a alma do homem que criou o Plano Piloto de Brasília sabendo, desde já, que ele mesmo disse:

– Tenho dificuldades para entender a cidade que inventei.

E tinha de ter, uma cidade é complexa e mutante como um ser humano. Ela é as histórias que a gente conta sobre ela – sobre quem a criou e sobre como cada um de nós vive dentro dela.
A curva ainda está longe, enquanto isso tento seguir o roteiro de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa: me importar apenas com o lugar onde estou, “porque não posso ver senão a estrada antes da curva”. E o poema aponta: “Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer”. Tomo o café e volto para a estrada, o poeta tem razão: é bonita a paisagem.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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