Embaixatriz do Gabão dá detalhes do ato racista sofrido pelo filho
No último dia 3, o filho de 13 anos da embaixatriz do Gabão foi abordado por policiais no Rio. O adolescente ficou com uma arma na cabeça
atualizado
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“Ele confessou que foi o pior dia da vida dele”, revela a embaixatriz do Gabão, Julie-Pascale Moudouté-Bell, de forma emocionada, ao se referir à violenta abordagem policial sofrida pelo filho de 13 anos em Ipanema, bairro do Rio de Janeiro. O episódio, que deixou o adolescente “traumatizado” e a mãe “chocada” e “sem chão”, ocorreu no último dia 3.
Em entrevista à coluna Claudia Meireles, a embaixatriz e ex-presidente do Clube Internacional de Brasília (CIB) compartilha como ela e a família têm se recuperado após o “horrível” acontecimento. Esposa do embaixador do Gabão, Jacques Michel Moudouté-Bell, Julie aconselha tanto os pais de crianças e adolescentes que sofreram racismo como qualquer outra pessoa que passe por uma situação preconceituosa a “não calarem a boca”.
Sempre com elogios na ponta da língua sobre a estadia no Brasil, Julie jamais imaginou que o filho de 13 anos enfrentaria uma abordagem da Polícia Militar do RJ e ficaria com uma arma apontada na cabeça. Na avaliação dela, o caso é uma notícia tão “ruim” que manchou a imagem do Brasil mundo afora. De cabeça erguida e com a pulsante e protetora força maternal, ela se coloca à disposição para ser porta-voz no combate ao racismo.
Embora considere ser uma tortura relembrar detalhes da situação sofrida pelo filho, Julie-Pascale sabe da importância de exteriorizar os sentimentos: “Para mim, é um tipo de cura. Eu mesmo estou me curando enquanto falo sobre esse assunto”. Segundo a embaixatriz, noticiar o que aconteceu é uma forma de “dar voz para que nunca mais esse tipo de episódio se repita” seja no Brasil, seja em qualquer local do mundo.
“Abordagem violenta”
De férias na casa de amizades brasileiras no Rio de Janeiro, o filho de Julie e Jacques Michel estava no bairro de Ipanema com amigos, sendo um deles o filho do embaixador de Burkina Faso e o outro, do embaixador do Canadá. Em um momento de se despedir de outro adolescente, o grupo foi surpreendido por policiais em uma viatura. Gravada, a ação dos agentes ocorreu em 3 de julho.
“Eles [policiais] saíram já com as armas na mão. Eles [adolescentes] foram pegos de surpresa e realmente não entendiam o que estava acontecendo. O que vimos nos vídeos foi que dois [policiais] saíram já com armas na mão apontando na direção dos meninos, sem perguntar nada, sem pedir identidade”, explica a embaixatriz. Ela prossegue: “Nós condenamos esse ato porque foi uma abordagem ilegal”.
Emocionada, a mãe conta que o adolescente foi levado, de imediato, pelos policiais para uma parede: “O primeiro a ser pego foi o meu filho de 13 anos. Ele foi revistado com a mão na cabeça o tempo inteiro”. Julie-Pascale Moudouté-Bell ressalta que a inspeção foi “bastante violenta”, que os agentes fizeram o jovem tirar a bermuda e o calção, conforme os amigos do filho testemunharam.
“Ele se sente muito humilhado”, reforça a ex-presidente do CIB. Ela pontua que houve a violação da imunidade diplomática, pois, por ser filho de embaixador, o adolescente está sob a cobertura da Lei Diplomática. Julie afirma sobre os policiais não terem pedido sequer um documento no momento da revista. “Não deram oportunidade para as crianças se apresentarem”, acrescenta.
“Erro gravíssimo”
“Fazer qualquer coisa com crianças tem de ser acompanhado. Esse já é um erro gravíssimo, porque a atuação deles [policiais] foi contra a lei”, frisa a embaixatriz do Gabão. De acordo com a mãe, além da abordagem ter sido feita “sem razão”, houve dois pesos, duas medidas: “Tinham cinco meninos. Por que deixaram os outros andarem sem problema? Sem chamá-los? Se fosse uma revista do grupo, por que deixar alguns irem tranquilamente e fazer somente com uma parte? Isso é discriminatório”.
Ex-presidente do CIB, Julie-Pascale sinaliza que a revista foi feita apenas com os adolescentes negros. “É isso que queremos entender também. O tratamento tem de ser igual para todo mundo, não há isso de diferença em relação a cor”, endossa. Comovida, a embaixatriz confessa sobre o filho não ter tido “coragem” de contar o episódio à ela e ao pai. O adolescente de 13 anos falou primeiramente ao irmão mais velho.
Ao saber da situação, a família, que estava em Brasília, viajou imediatamente para o Rio de Janeiro. “Queríamos entender e ver primeiramente o nosso filho”, rememora a embaixatriz. Em solo carioca, o embaixador do Gabão tratou de tomar as medidas cabíveis como responsável do adolescente. Ao ouvir o relato a respeito do episódio, Julie recorda de ficar “muito chocada, como mãe”: “Esse foi o meu primeiro sentimento. Eu perdi por um tempo a razão”.
“Até hoje me pergunto por que ele [filho]? Por que ele? Quero justamente que a Justiça me dê essa resposta. Por que ele é negro? Por que tem uma pele diferente? Pelo contrário, eu sempre vou falar sobre essa cor, somos muito orgulhosos dessa cor”, sustenta. A embaixatriz do Gabão salienta sobre ter ido para a Justiça com a finalidade de defender a igualdade: “Não temos uma cor ou uma comunidade superior, somos todos iguais. Nessa terra, a riqueza é justamente essa mistura”.
Porta-voz
A embaixatriz do Gabão exclama a respeito do Brasil ser “uma nação miscigenada e com sangue misturado”, e ainda existir racismo: “É isso que a gente não entende. Por que um país com a maioria de pessoas de raça, de comunidade preta, tem essa diferença? Tem de mudar!”. À coluna, Julie confidencia a respeito de atuar para mudar o atual cenário. “Me coloco como porta-voz. Se posso ajudar, estou à disposição”, evidencia.
“Não é um fenômeno que ocorre somente no Brasil”, partilha Julie. No ponto de vista dela, acabar com o racismo em todo o mundo requer “voltar na base”, ou seja, na casa, educação e família de um indivíduo. Ela enfatiza sobre uma criança ouvir de parentes e no próprio lar palavras que diferencie alguém pela cor: “Ela já começa a crescer com uma mentalidade de diferença e na escola, continua. Depois, permanece no trabalho, na rua”.
“Essa luta deve começar dentro da família. Sair bem preparado de uma família que mostra os valores como ser humano, não um humano diferente do outro, acredito que será um importante passo. Depois, será a vez de acompanhar a sociedade, tornando-a mais justa e igualitária”, assegura a embaixatriz do Gabão. Ela complementa: “Podemos não acabar totalmente, mas dará uma melhorada”.
Aos pais que estão sofrendo por ver os filhos passarem por uma situação de racismo, Julie-Pascale Moudouté-Bell clama: “Tem de falar, porque nós somos mais fortes juntas e juntos”. Ela argumenta que quem fica em silêncio fortalece a postura das pessoas com o sentimento de superioridade. “É preciso denunciar e eu convido todas as mães que enfrentaram um episódio assim a não calarem mais a boca”, suplica a ex-presidente do CIB.
A embaixatriz do Gabão declara que o Palácio do Itamaraty prestou assistência à família, além de ter pedido desculpas em nome do governo brasileiro. Julie espera que a Justiça “faça o devido trabalho” e tenha firmeza. Ela almeja que o “triste” episódio vivenciado pelo filho sirva de exemplo e não volte a se repetir. “Não precisamos de pessoas despreparadas para proteger a população. Nenhum tipo de família, pode ser estrangeira, brasileira, branca, negra, qualquer indivíduo, nunca mais deve acontecer esse tipo de situação”, brada.
Na entrevista, Julie agradeceu pela solidariedade recebida. A primeira-dama, Janja, fez questão de telefonar e a convidou para uma conversa. Na visão da embaixatriz, esse “apoio inimaginável” lhe deu força para dizer: “Que isso nunca mais aconteça no Brasil e no mundo, pois somos cidadãos do mundo. Basta, chega! Vou combater isso o tempo que eu ficar aqui e quando estiver no exterior. Queremos justiça e não vamos deixar uma situação assim se repetir com ninguém.”
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