Descubra o poder da maconha medicinal no combate a doenças e vícios
Pesquisas desenvolvidas no mundo todo envolvendo o canabidiol (CBD) avançaram fortemente nos últimos anos. Veja os benefícios para a saúde
atualizado
Compartilhar notícia
Pesquisas desenvolvidas em todo o mundo envolvendo o canabidiol, ou CBD, avançaram fortemente nos últimos anos. Os resultados quanto ao poder terapêutico da substância são animadores. Quem confirma isso é a professora da UnB e pesquisadora Andrea Gallassi. Segundo ela, os estudos sobre o tema foram iniciados por volta de 1960, em Israel, quando os cientistas identificaram as propriedades medicinais da planta, o que despertou um novo olhar sobre ela.
Em conversa com a Coluna Claudia Meireles, Andrea explica, primeiramente, que o canabidiol é um dos canabinoides presentes na Cannabis sativa, popularmente conhecida como maconha. Os dois ingredientes principais na cannabis são o tetraidrocanabinol (THC) — que gera efeitos psicoativos (o famoso “barato”) — e o CBD.
Por ser proibida no Brasil, a maconha tem sua pesquisa e aplicabilidades terapêuticas dificultadas, conforme opina a professora. “As descobertas dos pesquisadores de Israel foram um grande alerta para o mundo para que se investisse mais em estudos sobre as propriedades medicinais da Cannabis sativa”, diz. “Aconteceram um ‘boom’ de pesquisas nos últimos 20 anos — e não vai parar”, acrescenta.
“Vários países legalizaram o uso medicinal e até o recreativo da Cannabis, como algumas regiões dos Estados Unidos, além do Canadá, Uruguai e países da Europa. A nossa expectativa é que, nos próximos anos, tenhamos uma legislação que tire a maconha da esfera da proibição no Brasil para que possamos avançar mais em estudos para identificar esse potencial terapêutico”, fala Andrea.
Leia: Tratamento com canabidiol chega ao SUS em SP. Quem pode pedir e como?
Benefícios à saúde mental
Carlos Zimmer Jr, médico de família da SES/DF e prescritor de Cannabis medicinal, começou a indicar a substância para seus pacientes em 2020, depois de muito estudar sobre o assunto. “Eu entendi que ela tem inúmeros benefícios para a saúde das pessoas, principalmente modulando a saúde mental”, conta.
“Eu tive burnout no início da pandemia. Passei por um processo de autoconhecimento e autorreflexão, estudando formas diferentes de tratar as pessoas. Na medicina, geralmente isso é feito com medicamentos, mas não se trata a raiz dos problemas”, declara.
“Entendi que a Cannabis atua mais no bem-estar da pessoa, dentro do sistema endocanabinoide, um sistema de equilíbrio que todos os animais vertebrados têm. Quanto mais estresse você vai tendo, mais o sistema endocanabinoide vai sendo utilizado, e chega um momento que ele se esgota. E aí vem a Cannabis, que atua justamente nesse sistema de equilíbrio, trazendo uma homeostase maior”, esclarece.
Dentre os benefícios listados pelo médico estão, principalmente: dor crônica, ansiedade, depressão, esclerose múltipla, epilepsia refratária, além de doenças mais graves nas quais já se esgotaram outros tipos de tratamento.
Leia: Quais doenças o canabidiol pode tratar?
“A legalização está acontecendo e o Brasil precisa avançar muito com isso ainda. O debate já está na mesa”, ressalta.
Quanto às contraindicações, Carlos menciona que o CBD não é recomendado para gestantes, menores de 21 anos (exceto indicações formais de epilepsia e autismo) ou alergias.
“Eu tenho um paciente emblemático que era muito ansioso e tinha também TDAH (transtorno do déficit de atenção com hiperatividade). Ele roía muito as unhas, era muito ansioso, somatizava tudo, tinha problemas com o trabalho e em casa e tomava medicamentos controlados sem resposta. Quando entramos com o óleo de CBD para ele, ele simplesmente parou de roer as unhas, desmamou os medicamentos e, hoje, fica só na Cannabis”, relata o especialista.
Transformando vidas
Nascida e criada em Brasília, a trader e estudante de economia Débora Barra, de 28 anos, é mãe de uma criança autista não verbal. Lorenzo, de 7 anos, foi diagnosticado com autismo nível 2 aos 3 anos. “No início, nós utilizamos somente o medicamento risperidona, muito comum de uso em crianças autistas para diminuir os nervos. Lorenzo não verbalizava quase nada, só soletrava em dois idiomas. Tinha vários atrasos no desenvolvimento”, relata.
Durante um acompanhamento com uma neuropediatra, quando o garoto estava em seus 5 anos mais ou menos, Débora decidiu iniciar o uso do canabidiol. “Ele estava extremamente irritado, ficando agressivo e, ainda sim, faltava compreensão das coisas que falávamos. Não conseguíamos saber se ele estava entendendo ou não”, justifica.
Dois anos após o início do uso diário da substância como tratamento, Lorenzo nunca mais teve crises sensoriais, além de ser uma criança muito amorosa e beijoqueira, conforme expõe a mamãe, orgulhosa.
“Ele sabe ler, entende três idiomas — português, inglês e russo—, já está falando frases, tem um vocabulário extenso, conseguimos ter uma comunicação boa e até a parte motora fina dele vem melhorando cada dia mais”, noticia Débora.
Leia: Pais enfrentam batalhas para tratar filhos com o CBD
De acordo com a trader, os resultados com o uso da Cannabis medicinal começaram a aparecer de 2 a 3 meses após o início do acompanhamento. “Sem dúvida nenhuma, não largamos o canabidiol por nada! Sem contar que ele nunca teve reação negativa ao utilizar, inclusive, a substância ajudou bastante na alimentação, que foi um ponto que melhorou demais. Ele tinha muita seletividade alimentar e, agora, come de tudo”, celebra a mãe.
Uma ferramenta aliada dos dentistas
Cirurgião dentista formado em 1998, Guilherme Arthur Martins é especialista em periodontia, implantodontia e Cannabis medicinal. Ele conta que o proveito terapêutico da planta também já adentrou na área da odontologia.
“Nós temos diversos benefícios da Cannabis para os pacientes odontológicos, entre eles o controle de bruxismo e de dores refratárias na face, que, muitas vezes, não são solucionadas apenas com remédios convencionais, a exemplo dos opioides e os antiinflamatórios (opções que realmente levam a certos distúrbios gástricos ou são até capazes de viciar)”, fala.
Guilherme afirma que já atendeu alguns casos com dores neuropáticas que foram resolvidas simplesmente com a utilização do canabidiol juntamente com o THC. “Esses pacientes ganharam uma grande qualidade de vida, com remissão de quase ou total da dor”, alega.
Outro fator interessante a respeito do uso da substância nos consultórios odontológicos é a forma como auxilia nos casos de pacientes com medo de se submeterem a procedimentos, sem contar com o efeito analgésico e anti-inflamatório no pós-operatório.
“Era muito normal utilizarmos ansiolíticos para trazer um conforto pré-operatório ao paciente. Hoje, o canabidiol em óleo já tem esse efeito ansiolítico, então ajuda muito, já que muitas vezes os pacientes não têm necessidade de fazer uma sedação pré-operatória. Ele se sente mais relaxado”, argumenta.
“Na odontologia, nós temos diversas patologias que o sistema endocanabinoide (desde que corretamente modulado com o canabidiol ou os demais fitocanabinoides) pode trazer uma melhora na dor orofacial, bem como modulação de inflamação gengival, modulação de distúrbio do sono, na própria harmonização orofacial, em procedimentos pós-cirúrgicos e, com isso, nós conseguimos um melhor resultado, uma melhor assertividade. Inclusive, já temos produtos específicos para a odontologia, que são os cremes dentais e os colutórios nos quais os pacientes podem se beneficiar fazendo bochecho diariamente”, comunica o dentista.
Bom para humanos… E para os animais!
A empresária paranaense Aline Urban é tutora do Blu, um cachorro de 4 anos da raça galgo italiano. Ela conta que o animalzinho teve alguns episódios de epilepsia — que consistia em ficar com as patas dianteiras rígidas acompanhado de uma leve convulsão. “Os episódios duravam cerca de cinco minutos e tinham um intervalo de 30 a 45 dias”, descreve.
Aline e o marido, preocupados com o quadro do pequeno Blu, buscaram o melhor tratamento que pudessem encontrar. “O tratamento convencional é com fenobarbital (Gardenal), um medicamento muito forte. O Blu, além de pequeno, é bem magrinho, e não tivemos coragem de usar um remédio conhecido por seus muitos efeitos colaterais”, diz.
Ao conhecerem e levarem o animalzinho para uma consulta com o médico veterinário Luis Rayol, foi recomendado o uso de algumas gotas de CDB (canabidiol) durante um processo de crise. “O objetivo era verificar se, após passar cerca de 4 gotas diretamente na gengiva do Blu, a rigidez das patas iria cessar, bem como a convulsão. Para nossa surpresa, deu certo”, declara a empresária, que mora, atualmente, em Brasília, com o marido e o cachorro.
Feito o teste inicial, o casal voltou a conversar com o veterinário, mas, dessa vez, para iniciar um tratamento contínuo com o CDB, a fim de prevenir novas crises epiléticas. “O Blu iniciou o tratamento com 2 gotas pela manhã e 2 à noite. Tivemos que ajustar a dose e, hoje, ele toma 4 gotas pela manhã e 4 à noite. Assim que chegamos na dosagem ideal, o Blu não teve mais nenhuma crise. Tem, aproximadamente, um ano e meio desde que começamos. Hoje, não ficamos mais preocupados em sair de casa ou deixar o Blublu sozinho”, ressalta, aliviada.
“Há muito preconceito com o tratamento, mas eu tenho certeza que o uso do CDB para ele foi a melhor escolha, dentro das outras escolhas possíveis que eu tinha para fazer com remédios. Graças a Deus, o Blu nunca mais teve nenhum episódio”, reitera Aline.
Sob ponto de vista veterinário
Thaís Seixas Campêlo é médica veterinária pós-graduada em Medicina de Felinos, Psiquiatria Veterinária e Cannabis Medicinal. Ela compartilha que, durante a graduação, ela já estudava artigos científicos de fora do Brasil. Os resultados positivos para pacientes oncológicos, epilepsia, ansiedade e pacientes doentes renais o deixaram animada. “Porém, em 2020, não haviam cursos com o tema em Brasília, então fui fazer o primeiro curso de prescrição de Cannabis para animais em São Paulo”, comenta.
A ideia de começar o uso de deu, ainda, por conta da cadela da expert, a Meg, que era cardiopata, e tinha problemas endócrinos e um câncer.
“A operação para remoção do tumor era de risco, por causa do problema cardíaco e outras alterações. A maioria das medicações estava tendo um efeito colateral ruim. Meg já não estava tão ativa, passeando e brincando. Também tinha muitos vômitos e dores. Quando retornei do curso em São Paulo, iniciei imediatamente o uso da Cannabis na Meg e, aos poucos, fui retirando algumas medicações”, recorda.
De acordo com a profissional, os vômitos e o enjoo diminuíram. A pet voltou a ter um bom apetite e ânimo para passear e brincar. “A cannabis não curou a Meg, mas trouxe muita qualidade de vida até o dia da partida. Um dia antes de partir, ela passeou, brigou com outros cachorros e comeu a carninha que ela tanto gostava”, conta a veterinária.
Thaís já atendeu cães, gatos e aves. Segundo ela, a substância também pode ser utilizada em cavalos, bois, cabras e até em animais silvestres e exóticos. “O efeito medicinal existe pois todos esses animais, assim como os humanos, possuem um sistema chamado endocanabinóide, onde os fitocanabinóides têm ligação e atuam”, explica.
Um caso atendido pela especialista envolveu o Lion, um golden retriever de 11 anos com histórico de convulsões, devido a um tumor no cérebro. Ele também apresentava hipotireoidismo e dores articulares.
“Lion, às vezes, ficava internado por muito tempo para estabilizar as crises convulsivas e não tinha mais tanta disposição. Ficava bastante tempo dormindo, apático e com apetite caprichoso. As convulsões, mesmo com as medicações de primeira linha de tratamento, não estavam tendo um efeito esperado”, pontua.
A veterinária afirma que entrou com o CBD e o animalzinho respondeu muito bem. “Voltou a brincar, pegar a bolinha e rolar na grama. As convulsões cessaram e foi possível diminuir a dose de outras medicações”, compartilha.
Outro paciente, o gatinho persa Toulouse, de 13 anos, chegou com histórico de doença renal crônica, cisto hepático e muita agitação noturna. “Iniciei o tratamento com alguns fitoterápicos e também com a Cannabis e o efeito foi bem positivo. À noite, ele tem dormido bem, deixando todo mundo da casa dormir. De dia, está mais ativo, não está mais tão ansioso”, relata.
Encontrado nas farmácias
De acordo com Carlos Zimmer, medicamentos à base de Cannabis estão disponíveis nas farmácias desde 2014. É o caso do Mevatyl, aprovado há muitos anos para tratar esclerose múltipla. Hoje, mais de 25 óleos de Cannabis têm autorização da Anvisa para serem vendidos nas farmácias.
No entanto, segundo o médico, para obter um produto desse tipo, é preciso uma indicação médica, uma receita ou um relatório.
A pessoa pode adquirir a fórmula manipulada tanto diretamente na farmácia quanto por meio de associações de pacientes e familiares que produzem a Cannabis e vendem o excedente, como a Abrace, na Paraíba, que tem mais de 30 mil pacientes associados. “Quase todos os estados do Brasil têm uma associação legalizada para poder vender o óleo”, complementa.
Outras duas maneiras de se obter a substância manipulada, segundo o profissional, é importar, por meio de uma receita (processo que também envolve a Anvisa), ou pelo autocultivo. “A pessoa prova para a Justiça que é capaz de plantar, colher, produzir e extrair o óleo, e adquire esse direito”, elucida.
Em julho, o empresário Roberto Casali abrirá em Brasília uma unidade da Biomagistral, a primeira farmácia de manipulação com autorização para manipular canabidiol no Brasil. O interesse por oferecer à capital um serviço de manipulação da substância para uso medicinal surgiu depois de estudar na Califórnia.
“Lá, eu aprendi sobre os usos medicinais e a importância desse tratamento para algumas doenças. Na volta para o Brasil, fiz muitas pesquisas e descobri que a Biomagistral foi a primeira farmácia do país a manipular canabidiol”, compartilha.
Roberto conta que, no cenário brasileiro atual, algumas farmácias de manipulação têm autorização do Poder Judiciário para incorporar o CBD em fórmulas terapêuticas.
Uso da Cannabis no combate ao crack
Pode parecer paradoxal, mas o canabidiol, extraído da maconha, tem se mostrado promissor no combate ao vício de crack.
Enquanto atendia pessoas dependentes de álcool e drogas, Andrea Gallassi identificou que o uso intencional da maconha entre os usuários de crack era capaz de diminuir os efeitos da abstinência da droga, além dos próprios efeitos de desejo. “Isso me levou a investigar as propriedades terapêuticas do canabidiol para ser aplicado no tratamento das pessoas dependentes de drogas”, diz ela.
“O curioso é que é um composto de uma planta que ‘é considerada uma droga’ — pois também tem seu uso abusivo, mas ela tem propriedades medicinais — no entanto trata a dependência de ‘outra droga’, que é o crack”
Andrea Gallassi
O estudo cego de Gallassi separou os participantes em dois grupos, um que recebeu o canabidiol e outro que recebeu medicamentos convencionais para tratar a dependência de crack. Ao longo de 11 semanas, foi observado como cada grupo se comportava no sentido de diminuição de uso da droga, de efeitos colaterais, redução da fissura e melhora do apetite.
A professora e pesquisadora revela que fez, junto a sua equipe, as medidas semanais dessas pessoas. Os resultados foram animadores.
“Embora ambos os grupos melhoraram em vários parâmetros, o grupo que recebeu o canabidiol melhorou em mais parâmetros que o outro. Isso quer dizer: redução do uso de crack, aumento do apetite, a não diminuição da ingesta de alimentos por causa do uso de drogas, baixíssimos eventos adversos (efeitos colaterais) e melhora na qualidade de vida e na saúde em geral”, lista.
“Quando fizemos a nossa pesquisa com o canabidiol para os usuários de crack, foi uma verdadeira jornada para conseguir autorização junto à Anvisa. Foi algo muito burocrático, justamente porque é proibido. Uma série de entraves foi colocada, além do preconceito”, recorda.
“Esperamos que, com o avanço das pesquisas, do debate, e de matérias informando a população, o preconceito com a Cannabis vá diminuindo. Estamos batalhando para conseguir, para ampliar justamente os estudos científicos, para que possamos identificar quais são as doenças que se beneficiam da substância”, levanta Andrea.
Para saber mais, siga o perfil de Vida&Estilo no Instagram.