Dalton Paula abre as portas do Sertão Negro e detalha projetos futuros
Dalton Paula ganhou projeção internacional com seus trabalhos. Ele recebeu a coluna para conhecer seu projeto Sertão Negro
atualizado
Compartilhar notícia
Quando adolescente, Dalton Paula desenhava o que via na televisão, no caso, a série japonesa de mangá Os Cavaleiros do Zodíaco. Ali, os traços davam corpo a uma gestualidade que, anos depois, viria a se concretizar em obras plásticas. Contudo, se por um lado, a animação serviu de porta de entrada do brasiliense, radicado goiano, para as artes visuais, faltava uma representação que tanto lhe incomodava: a ausência de um corpo como o seu.
“Na infância, tinha um incômodo relacionado a questões de identidade. Se ver na sociedade, nos meios de comunicação, na escola, como homem preto era um desafio”, relembra o artista em conversa com a coluna Claudia Meireles. “Uma preocupação era ligar isso a um lado positivo”, acrescenta.
Mas assim Dalton Paula tem feito. Seja enquanto corpo individual, como artista plástico, seja quanto coletivo, à frente do projeto Sertão Negro, o brasiliense tem resgatado histórias silenciadas e aberto espaço para o protagonismo da tradição brasileira, desde sempre de origem miscigenada.
Reconhecimento internacional
No currículo, Dalton soma bienais, prêmios, exposições – e uma baita responsabilidade, como afirma o artista. Mais recentemente, ele foi selecionado para integrar a Bienal de Veneza 2024, um dos principais eventos de arte, que consagra nomes do mundo todo.
“É uma responsabilidade muito grande misturada com alegria e satisfação”, define. “A gente vive em um país continental com uma diversidade muito grande, então, me sinto como que trazendo um pedacinho desse universo afrobrasileiro, dessa referência de matriz africana”, complementa
Na mostra, Dalton apresenta a série Retratos de Corpo Inteiro (2023-24), formada por 16 pinturas. Nos trabalhos, figuras históricas de ascendência africana que lideraram ou estiveram de alguma forma envolvidas em movimentos de resistência antiescravagista no Brasil são representadas.
“A obra constrói essa retratação faltante no imaginário do brasileiro. A obra imagina e constrói os retratos e neles, algumas partes não são pintadas, como marcas do apagamento promovido pela violência não só simbólica, presente na história do Brasil”
curador Carlos Lin.
A assinatura de Dalton ainda está presente em acervos como o do Museu de Arte Moderna de Nova York (Moma); da Pinacoteca do Estado de São Paulo e do Museu de Arte de São Paulo (MASP). Além disso, outro feito recente do artista foi figurar entre os dez premiados pelo Chanel Next. O prêmio de cultura oferecido pela maison francesa é concedido a cada dois anos a artistas internacionais que estão redefinindo suas áreas de atuação.
Artista multifacetado
De acordo com Carlos, artista, curador independente e professor de história da arte, muitos motivos fazem da obra de Dalton Paula relevante. “Um deles é que sua obra explicita diversos aspectos da cultura brasileira contemporânea. A produção em arte é um dos aspectos da cultura. A obra de Dalton Paula investiga múltiplas linguagens artísticas, como a performance, a pintura, a instalação, a escultura, entre outras”, detalha Carlos.
Os trabalhos abrem um diálogo com a tradição brasileira e atualizam situações relevantes às heranças do artista, como as decorrências da diáspora, a complexa formação da religiosidade e a presença dos elementos sincréticos. “Um terceiro motivo pode ser atribuído ao fato de, como artista contemporâneo, sua obra efetuar um posicionamento crítico diante do mundo, tocando em pontos importantes para o contexto atual, como a violência do capital, o papel da mulher na sociedade machista, o lugar importante de personagens vinculadas a afrodescendências que foram apagadas da história do país, entre outros”, lista Carlos.
Na avaliação do curador, a presença de Dalton em um projeto do tamanho da Bienal de Veneza revela uma potência artística que não reside no eixo sudestino. “A obra de Dalton Paula apresenta outros aspectos que são constitutivos da arte brasileira. Dalton Paula nasceu em Brasília e, hoje, vive e trabalha em Goiânia. O planalto central é seu chão, o Cerrado é seu jardim”, descreve.
Com Dalton, “o circuito de produção no centro-oeste se fortalece. A tendência é que esse fortalecimento explicite mais uma vez que essa produção é possuidora de todos os atributos necessários para a constituição de obras de arte”, complementa Carlos.
Do individual para o coletivo
Como coloca o curador, a obra de Dalton ganhou fama como sendo construída pelo “bombeiro artista” – uma referência à profissão anterior do brasiliense -. Contudo, esse corpo artístico tem alcançado cada vez mais espaço, não só pelo reconhecimento, mas por se estender para um entendimento de coletividade dentro do projeto Sertão Negro.
“O Sertão Negro traz um pouco dessa referência de estar em comunidade, de fazer trocas, onde cada um tem um pouco a construir, de trazer a coletividade que é muito potente”, define o artista.
Localizado no bairro goiano de Shangry-Lá, o terreno antes tomado por mato abriu espaço para o diálogo e o intercâmbio com a cultura – um quilombo contemporâneo. Ali, Dalton construiu um ateliê e uma escola de artes, além de funcionar como “coletivo de artistas embasados em Goiânia que produzem pesquisas poéticas engajadas com diversas condições das vivências contemporâneas, como a questão do gênero, a sexualidade, a autobiografia, os processos de marginalização, entre outras”, pontua Carlos Lin.
Residência e projeto habitacional
Além de Dalton, quem recebeu a coluna e um grupo de amantes das artes plásticas, sob a orientação de Carlos Lin, foi a artista Xica. Natural de Minas Gerais, ela é também professora de gravura no Sertão Negro e integrante do Batalhão das Gravadeiras, um coletivo feminino focado na produção de gravura em diferentes técnicas, com mais seis asrtistas cis/trans.
Xica detalha que o espaço funciona ainda como residência artística, tendo um braço regional, um nacional e um internacional. Por meio de convites, editais e parcerias, artistas do mundo podem conhecer de perto não só o processo criativo de Dalton Paula e outros artistas, como vivenciar a riqueza e a diversidade da cultura local. Os participantes têm a oportunidade de experienciar a vida em dois quilombos – o Kalunga do Engenho II, na Chapada dos Veadeiros, e o Quilombo Cedro, em Mineiros (GO).
“Pensar a ligação corpo-território é um dos fundamentos praticados no Sertão Negro”, detalha Xica. “Quando a pessoa vai para o quilombo é preparado todo um guia para que ela conheça a comida e as benzedeiras, por exemplo. Isso enriquece o conhecimento do artista e não é um lugar de extrativismo da população quilombola”.
Para Dalton, que trabalha com essa população há 18 anos, o quilombo é uma referência desse “corpo negro”. “De ancestralidade, dos mais velhos, de estar no meio da natureza de uma forma não hierárquica, mas integrada, de respeito”, explica o artista.
Atualmente, o Sertão Negro integra cerca de 35 pessoas, que buscam conciliar a produção em arte contemporânea com a vida cotidiana, “produzindo então um bem-estar que é uma espécie de bálsamo para a etapa atual do super capitalismo imperante”, como coloca Carlos Lin. Em breve, a ideia, como apresentado à coluna, é inaugurar o Jatobá Nascente, um projeto habitacional de um “condomínio de artistas”.
Confira os cliques da visita!
Para saber mais, siga o perfil de Vida&Estilo no Instagram.