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Nos abandonaram no elevador, nos abandonaram no país e na vida

O abandono de Miguel Otávio, 5 anos, é o abandono que todo brasileiro negro sente há 500 anos

atualizado

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Gui Prímola/Metrópoles
Ilustração para coluna de Anderson França sobre morte do menino Miguel, 5
1 de 1 Ilustração para coluna de Anderson França sobre morte do menino Miguel, 5 - Foto: Gui Prímola/Metrópoles

Eu não sei começar esse texto sentindo os milhões de sentimentos de ódio que tenho neste momento.

Eu estou pedindo força a Deus, pra que eu não escreva algo que me comprometa na redação deste veículo.

Mirtes Renata, empregada doméstica, pegou o ônibus ontem às 6 da manhã, e foi pro trabalho, com o filho na mão, Miguel Otávio, de 5 anos.

Uma mulher negra, moradora do Bairro do Barro, no Recife, uma região popular da cidade. Bairro do Barro, como muitos bairros simples, tem ruas com nomes muito bonitos. Rua Lirio do Vale, Rua Coração de Jesus, Rua Novo Horizonte.

Há quatro anos, Mirtes faz o mesmo trajeto, todos os dias. Começou a trabalhar como doméstica para a mesma família, quando o filho Miguel completou 1 ano. E quando a gente tem filho, a gente se segura num serviço. A vida passa a ser regida pela criança. O leite Ninho, a creche, as roupinhas, os brinquedos.

Mirtes trabalhava para o perfeito de Tamandaré, uma cidade em Pernambuco, o prefeito não mora em Tamandaré. Coisas que só vemos no Brasil. O prefeito, Sergio Hacker, do PSB, apresentou exames positivos pra Covid-19 semanas atrás. A esposa, Sari Gaspar Corte Real, não dispensou Mirtes, pelo contrário, exigiu que mesmo em pandemia, ela viesse trabalhar, porque Sari Gaspar, “mãe e maratonista”, como dizia em seu Instagram, loira, olhos verdes, branca, bem nascida e aristocrata boa moça, não pega num perfex pra limpar a mesa de centro. Não pega na vassoura pra varrer o corredor.

É a primeira-dama. Da categoria de Michelle Bolsonaro. Linda, impecável, é da Corte Real mesmo. Acabou o Império, mas ficaram as primeiras-damas brasileiras, as blogueiras racistas, as atrizes racistas, as namoradinhas do Brasil fascistas, brancas, todas brancas, pois mulher branca sabe se ocultar nos sistemas de opressão quando quer. Se diz oprimida pelo patriarcado. E é.

Mas ela, se branca, sabe constranger pessoas com suas lágrimas, pois todo mundo acha que lágrima de mulher branca é um legítimo pedido de ajuda. Por este motivo que várias mulheres no Estados Unidos ligam pro 911 dizendo que estão sendo ameaçadas por homens negros, quando na verdade, esses homens estão filmando a picaretagem delas. Se isso não é privilégio, me diz você o que é.

Eu tenho muito ódio de classe, e escrevo essas linhas carregado disso. Não vou mentir. Mas na semana do levante popular mundial pela morte de George Floyd passar a mão na cabeça da Sari Gaspar Corte Real (e insisto em escrever o nome todo, pra que ninguém esqueça) é algo que eu não vou fazer.

Eu tenho alguns motivos para encorajar pessoas a se reunirem agora na entrada das Torres Gêmeas, no Bairro São José, e exigirem justiça por Miguel Otávio.

A essa altura, todos sabem a história.
Mirtes desceu com a cadela de Sinhá Sari Gaspar Corte Real.

Precisou levar o filho, pois as creches, na pandemia, estão corretamente fechadas. E Sari Gaspar Corte Real, sendo mãe, deveria permitir que Mirtes ficasse em casa. Mas Sari Gaspar não pode quebrar a unha. Sari Gaspar provavelmente passa o dia assistindo os stories de sua blogueira favorita, Luisa Nunes Brasil.

Luisa, quem sabe ídala de Sari Gaspar, faz um trabalho chamado “Seja Mara”, e tem quem pague por isso. Disse, ontem mesmo, que é “natural que as pessoas sejam racistas, pois negros cometem mais crimes”. Questionada pela afirmação que vai ser enquadrada como crime de racismo, disse: “Gente. Eu não sabia que tava sendo esculachada no Facebook. Eu não vejo. E não me defenda lá. Vai fazer sua unha, sua sobrancelha, seu buço”.

Quem sabe, Sari Gaspar passa o dia assistindo as incríveis dicas de Luisa Nunes Brasil, todas com nomes compostos, grandes, de muitos sobrenomes, pedigree, e por isso não tem tempo para cuidar da própria casa, levar a cachorra pra passear, ela mesma, cuidar da criança, quem sabe trabalhar, estudar, se envolver em tarefas políticas, criar projetos pessoais.

Não.

Exigiu que Mirtes fosse trabalhar.

Hora de levar a cachorra. Mirtes deixa o menino na sala. Pede pra ele ficar quieto. Sari Gaspar, claro, não gosta da presença do menino. O filho da empregada, esse personagem é real, eu sou um deles, e sofre.

Mirtes desce. A cachorra da madame faz xixi, cocô. Mirtes volta. Encontra o porteiro nervoso. Alguém se jogou. Mirtes vai com ele ver o que houve.

Abre a porta do elevador, e daquele ponto em diante, sabemos a história.
Ela mesmo disse, ao NE 1, ao vivo.
Viu seu filho no chão, sangrando com multitraumatismos. Ainda com olhos abertos, mas fixos. O choro de Mirtes Renata está incendiando a minha alma, mais que qualquer incêndio em Minneapolis.

Sari Gaspar foi filmada.
Ela não suportou as reclamações da criança, que queria ficar com a mãe. Pegou o menino e ABANDONOU no elevador. O menino, a deriva, chega ao nono andar, e de lá, cai, pois não havia tela de proteção.

Pagou R$ 20 mil. Foi liberada.
Em grupos de mães, pasme, há mulheres defendendo Sari Gaspar, e dizendo que a culpa é de Mirtes. Mulheres brancas, mães. De um lado, gritam por direitos da maternidade, do outro, defendem assassina. Nos Estados Unidos, já se falam em 20 anos de prisão para os policiais que assassinaram George Floyd. Justiça boa é justiça rápida.
Mas aqui, são muitos os privilégios que Sari Gaspar pode ter, e a vida de Miguel custou R$ 20 mil, uma mixaria que não paga nem o condomínio das Torres Gêmeas.

O Brasil de 2020 precisa de uma solução. Que se eu escrever numa coluna de jornal bem pode ser que eu seja o prejudicado.

Mas Miguel Otávio não pode ser mais uma vítima do ódio branco. Do tratamento desigual e racista que Sari Gaspar e milhões de pessoas neste país dão aos negros. Da forma como brancos no Brasil tratam negros, nos elevadores, nas lojas, nas redações de jornal, nas igrejas, nas escolas particulares como o Colégio Franco Brasileiro, nas ruas, na vida.

Ela deveria ser presa, por homicídio.
A justiça deve considerá-la responsável direta pela morte da criança.
A blogueira que naturaliza o racismo, presa por este crime e por encorajar o ódio a cidadãos brasileiros negros. Os pais e os alunos do Franco Brasileiro deveriam estar presos. O presidente da Fundação Palmares deveria estar preso.

E quando forem presos, vão dividir a cela com muitas mulheres que já foram domésticas. Aí, amigo, é a justiça da cela. Ninguém poderá te ajudar. Todos ali foram domésticas ou filhas de domésticas, até as carcereiras. Até este que escreve.

Mirtes, muito lúcida, faz apenas uma pergunta.
Ela não pergunta porquê isso aconteceu. Ela SABE.

Ela pergunta:

“E se fosse eu?

E ela mesma responde: “Meu rosto estaria em cartazes por toda a cidade.”

Justiça para Miguel Otávio. Justiça agora.
Justiça.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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