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Sem Volta, de Charles Burns, é uma imersão nos traumas da memória

HQ traz ao mercado brasileiro a nova produção do conceituado americano Charles Burns

atualizado

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Sem Volta, a HQ que sai agora pela Companhia das Letras, contempla a produção mais recente do americano Charles Burns, um dos quadrinistas mais premiados e prestigiados do mundo na atualidade. Ela segue a republicação no Brasil de sua obra-prima, Black Hole (pela Darkside Books), e este é um bom momento para se refletir sobre a estética desse autor, já que o novo quadrinho é também um mergulho íntimo, cheio de traços autobiográficos, longa jornada memória adentro.

O universo de Burns é carregado de abjeções e estranhezas misturadas a retratos da juventude americana a partir de recortes de época. Em Black Hole, adolescentes ganham mutações repulsivas (ou nem tanto…), parodiando os X-Men, a partir do contato sexual. O expressivo preto e branco indie do seu traço influenciou de tal forma os zineiros e autores independentes por aí que chegou a gastar. Em Sem Volta, ele emula o sistema de policromia para colorir – utilizado em quadrinhos da era de ouro – para se renovar.

Essa opção não vem por acaso. Sem Volta é meticulosamente pensado para dialogar com HQs clássicas, em dois prismas. Um deles é representado pelos romance comics, quadrinhos do pós-guerra voltados ao público feminino, geralmente narrados em primeira pessoa. Tratava-se de um material até certo ponto conservador (depende de como você queira chamar histórias de garotas adolescentes suspirando por homens um pouco mais velhos), devedor do american way of life. O gênero teve dezenas de publicações e milhões de vendas entre os anos 1940 e 1970.

O outro prisma são álbuns de Tintim, o famoso repórter mirim criado por Hergé, obra fundacional das escolas europeias de quadrinhos. Burns situa todo um núcleo surrealista (à la Bosch) na paródia direta das histórias do jovem aventureiro. Curiosamente, por mais que o autor, aos 62, ainda mantenha o espírito inquieto da época da revista RAW e trabalhe com metalinguagem, Sem Volta continua sendo um perfeito exemplo das aspirações e condições de comunicação das HQs contemporâneas.

O que vemos neste quadrinho está dividido também em dois tipos determinantes de memória: o primeiro é o vai e vem de lembranças de seu protagonista, Doug, em fases distintas de sua vida, quase sempre amarrado a uma jovem fotógrafa de gostos obscuros com quem ele desenvolve o amor, a depressão e a obsessão. Burns revela sutilezas dessa relação como se pudesse misturar os romance comics com os escabrosos quadrinhos de terror da era de ouro (tipo as histórias de Al Feldstein, clara influência), também muito populares no pós-guerra.

Aqui é o primeiro momento em que o título da compilação – originalmente, Sem Volta saiu em três volumes distintos, entre 2010 e 2014 – faz sentido. Decisões erradas que tomamos na vida desenvolvem consequências exponenciais muito antes que tenhamos sequer a chance de olhar para trás. A narrativa de Burns, nesse sentido, é tecida com doloroso amargor, sensível a qualquer leitor cravado de cicatrizes na alma, seja em relações familiares, amorosas, coisas que fizemos, coisas que dissemos.

Sem aliviar a densidade existencial do livro, ainda acompanhamos a jornada de um personagem criado por Doug em um mundo parecido com o de Tintim, só que como se consumido por uma hecatombe nuclear e dominado por homens-lagarto mutantes que instauram um regime de trabalho, servidão e brutalidade. Logo percebemos que as duas porções de Sem Volta se juntam porque compartilham a mesma natureza e estilo “terra arrasada” de sentimentos.

Não somos devidamente informados se o lado “aventuresco” desse quadrinho é realmente a transfiguração de um sonho de Doug, mas tudo indica que os dois mundos representados são espelhos invertidos, lidando com as mesmas situações. Burns capricha na criação de paisagens e situações de pesadelo, e o descortinar de sua simbologia leva a soluções típicas dos sonhos para problemas e desejos que não queremos encarar no mundo de vigília.

Em seu imortal Interpretação dos Sonhos, Freud posiciona a atividade onírica como funcionando sob dois princípios: a condensação, que junta desejos distintos dentro de uma mesma narrativa; e o deslocamento, que tira essas narrativas da indesejada literalidade e as coloca no mundo insano e dissimulado do sonho. Sem Volta apresenta relações do tipo freudianas bastante complexas, e não seria equivocado procurar decifrar a história fantástica como condensação e deslocamento das questões levantadas na narrativa realista.

Sem Volta, além de toda a sua bela e melancólica imersão, é também um inventário cultural do final dos anos 1970, nascedouro do punk rock e de um bom número de práticas interessantes de então. Desde as preferências sexuais até o uso de gravadores em fita e polaroides, o retrato da época faz também parte deste fio de Ariadne que nos conduz ao labirinto sem fim da memória. Nesse sentido, o apego a um passado midiático, material e estético também dá substância ao título do quadrinho. Quem conhece o ambiente e as bandas que fomentaram o punk nessa época sabe que, para esse brilhante cenário musical, também não existe retorno.

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