Velho Oeste, o retorno: clássico cowboy Tex ganha série de luxo
Serão 60 edições especiais em capa dura com artistas de renome convidados
atualizado
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O teórico do cinema Edward Buscombe situa o gênero do faroeste dentro de um conflito definidor entre selvageria e civilização. O cowboy seria o agente intermediador desses dois universos. A parábola do Velho Oeste, com seus personagens arquetípicos, estaria aí até hoje para substanciar um mito de origem bem visível para a nação norte-americana.
Os melhores faroestes conseguiriam embaralhar essa dualidade. No início, os indígenas é que precisam ser civilizados. A construção de escolas, prisões e prefeituras demarcam esse pacto civilizatório. Porém, no fim das contas, o colonizador é que precisa aprender com os índios. O cowboy estaria entre essas duas instâncias, fazendo a ponte cultural para cumprir os processos.
Na semana passada, falei sobre “Dylan Dog” e o fumetti bonelliano, quadrinho italiano de banca popular aqui no Brasil. Hoje é dia de falar do “patrono” do fumetti, mito fundador de toda uma tradição sólida de quadrinhos no mundo inteiro, o cowboy/ranger Tex Willer. O motivo para a celebração é o lançamento, pela editora Salvat, de uma robusta coleção em capa dura (“Tex Gold”), com 60 edições especiais, que chegarão às bancas (espera-se) quinzenalmente.
O material vem de coleções especiais (conhecidas na Itália como “Il Texone”) que geralmente contemplam magníficos ilustradores convidados, como o argentino Enrique Breccia, o espanhol José Ortiz e o americano Joe Kubert. A primeira edição, já disponível nas bancas de Brasília, foi publicada originalmente em 2007 e traz roteiros do tradicionalíssimo Claudio Nizzi (um dos maiores argumentistas dos quadrinhos) e a arte sofisticada do italiano Corrado Mastantuono.
“Tex” foi criado em 1948 pelo patriarca da família Bonelli (Gian Luigi) e foi ilustrado durante anos pelo homem que desenvolveu seu design, Aurelio Galleppini (Galep). No Brasil, começou a ser publicado em 1951 na revista “Junior”. A editora Vecchi apresentou a série regular a partir de 1971 e, desde então, mesmo trocando algumas vezes de casa, a trama nunca deixou de ser publicada, mantendo a numeração original.
A paulista Mythos é quem detém os direitos do personagem desde 1999 e mantém as publicações até hoje. A série regular possui mais de 600 números, e 13 títulos distintos (entre reedições, edições gigantes, especiais, etc.) saem todos os anos, em diferentes periodicidades.Para quem nunca leu “Tex”, basta dizer que, de certa forma, ele representa o ideal arquetípico do faroeste preconizado por Buscombe. Mesmo um pouco “engessado” por certa fórmula de cavalaria maniqueísta (neste sentido vale procurar os mais “sofisticados” fumettis de faroeste “Ken Parker” e “Mágico Vento”), está lá a problematização do espaço de conflito entre certa “naturalidade” (as diversas tribos indígenas e suas diferentes relações) e o avanço desenfreado do processo colonizador (cidades, ferrovias, instituições).
Tex, um ranger que teve um filho com uma índia Navajo, discerne as duas vias por meio de um senso ético indistinto. Com frieza e sobriedade, sempre faz o “certo” acima de qualquer ambiguidade mais complexa. E o faz com a competência de um super-herói. Raramente erra um tiro. Poucas vezes foi ferido. Trata-se, é claro, de um clássico gibi de aventura.
O Profeta Indígena
“O Profeta Indígena”, a história da primeira edição da coleção, narra a trajetória de um membro da etnia dos índios Hualpais que tem uma visão sobre a unificação de todas as tribos para eliminar a ameaça do homem branco. Ele se torna uma forte liderança e sua congregação balança o tênue equilíbrio entre brancos e indígenas no Norte do Arizona. Como ranger, Tex e seus colegas se envolvem em uma missão para impedir que um grande carregamento de armas chegue até os Hualpais.
O roteirista italiano Claudio Nizzi escreve Tex desde os anos 1980 – aos poucos foi substituindo o segundo na dinastia Bonelli (Sergio) –, e “O Profeta Indígena” é um arrojado exemplo de sua técnica de roteirizar gibis de aventura. São duzentas páginas de armadilhas, lutas, perseguições, trapaças e jogos de gato e rato. Os personagens possuem espaço e tempo para desenvolverem nuances, carisma, traços distinguíveis.
Não apenas complementando as palavras do roteirista, mas encarnando uma visualidade detalhada e milimétrica, Corrado Mastantuono é o responsável por tornar esta edição uma pequena obra-prima, com ilustrações finas de potentes cavalgadas, tiroteios vívidos, paisagens realistas e espetaculares. São visões dramáticas e panorâmicas, às vezes com dezenas de ações ocorrendo no mesmo quadro.
A química precisa entre Nizzi e Mastantuono, certamente, foi um elemento que chamou a atenção para se escolher essa história para o primeiro volume da Salvat. Há quem ache o colorido por computador (um tanto saturado, especialmente no amarelo berrante de Tex) desprezível, mas eu aprovei a chegada dessa miríade de brilho e beleza a um quadrinho tradicionalmente preto e branco.
O diálogo com o mito fundacional do faroeste com certeza é uma das chaves para se compreender a perenidade de um quadrinho como Tex. Em uma época em que mesmo o cinema americano rejeita o western, essa pedra fundamental da HQ italiana regride o gênero à sua essência simbólica, com simplicidade, efetividade e o principal: desenhos e histórias cativantes. Deve ser a fórmula da juventude para esta quase septuagenária publicação.