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Mort Cinder: HQ argentina chega ao Brasil para discutir a história

Produzida nos anos 1960, a revista apresenta inflexões sociais e filosóficas

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Há muito o mercado brasileiro estava em débito com uma obra que, pode-se dizer, redefiniu os quadrinhos. Mort Cinder, em edição deluxe pela editora Figura (lançado no final de 2018), chega para preencher lacunas. Poucos sabem, mas nossos vizinhos argentinos possuem uma cultura riquíssima na nona arte, e uma legião de autores que hoje se enquadram entre os melhores de todos os tempos. Falo de Alberto e Enrique Breccia, de Solano López, Horacio Lalia, Carlos Trillo, José Muñoz, Quino, entre tantos clássicos. E, na geração mais nova, há Liniers, Maitena, Ignacio Minaverry, Lucas Varela. Sendo isso apenas a ponta de um iceberg sempre sob investigação.

Porém, na minha opinião, nenhum nome do quadrinho argentino se sobrepõe ao do roteirista Hector Germán Oesterheld. Admirado por gente do quilate de Jorge Luis Borges, sua história é fulminante: pioneiro das editorações e na escrita de HQs argentinas desde os anos 40, ele foi um dos responsáveis por catapultar a carreira do italiano Hugo Pratt – um dos mestres universais desta arte – quando este teve de procurar mercados mais promissores que o europeu depois da Segunda Guerra. Oesterheld escreveu brilhantes histórias em gêneros diversos: faroeste, guerra, suspense, etc.

O Eternauta, escrita por ele e ilustrada por Solano López, uma ficção científica que começa a ser publicada por sua editora Frontera em 1957, foi aos poucos galgando o título de HQ mais importante da história argentina. Trata-se de um longo conflito, inspirado em padrões de resistência antifascista que ecoavam após a Guerra, entre diversas pessoas comuns e uma raça alienígena com tecnologia muito superior.

Os temas da liberdade, da opressão e da injustiça permaneceriam constantes na carreira de Oesterheld (incluindo uma polêmica biografia de Che Guevara) e ele intensificou seu ativismo quando se juntou ao grupo guerrilheiro Montoneros, o que fez ocasionar seu desparecimento em 1977, quando foi sequestrado pelas forças armadas da ditadura argentina. O mesmo destino se abateu sobre as suas quatro filhas, também militantes. Eles jamais foram encontrados.

Lançado pela Figura, Mort Cinder é um dos pontos altos da carreira de Oesterheld, especialmente porque foi feito em parceira com outro titã dos gibis argentinos. Alberto Breccia trabalhou como açougueiro antes de entrar para a carreira de ilustrador e, se isso é um atributo pejorativo no mundo do futebol, aqui ele pode até ser uma vantagem. Mestre de texturas, linhas e sombreados, a extensão de sua influência vai de Gipi a Rafael Grampá. De Bill Sienkiewicz a Frank Miller. Breccia costumava dizer: “Se eu necessitar desenhar com um martelo, usarei um martelo”. Isso dá uma noção da paulada que é ser atingindo pelos efeitos gráficos criados por suas técnicas.

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A dupla já havia trabalhado junto nos anos 1950, quando fizeram o clássico de investigação estilo Dr. Who, Sherlock Time, mas, ao publicarem Mort Cinder na revista Misterix entre 1962 e 1964, pode-se dizer que ambos chegaram ao ápice de suas performances. Nas apressadas primeiras histórias, acompanhamos apenas um velho antiquário se envolver numa desajeitada e pulpesca trama sci-fi bem trash. Porém, na medida em que ganham confiança, Mort Cinder vai acrescentando inflexões sociais e filosóficas.

Os roteiros de Oesterheld, literários, cheios de infusões poéticas, passam a pensar uma ideia em cada história, que não é continuação da anterior. Breccia, por sua vez, se tangencia entre um funesto realismo e ao mesmo tempo dá a impressão de estar prestes a arrebentar num incontrolável surrealismo. Tudo isso para expressar as histórias estreladas pelo próprio personagem Mort Cinder, um enigmático homem imortal. Porém, diferentemente de um vampiro, ele pode morrer. A diferença é que o personagem sempre acorda novamente, em outra época.

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A partir desta amarga premissa (a imortalidade como condição do esquecimento), Oesterheld vai colocando seu protagonista em encruzilhadas históricas, sempre questionando as relações sociais vigentes. Somos levados à Torre de Babel, à Batalha das Termópilas, à 1ª Guerra Mundial, aos navios negreiros, às prisões do século 20. Tudo isso misturado a conspirações alienígenas, deuses antigos e à estranha presença de Mort Cinder como um observador que vai demolido em seu interior, por presenciar sucessivas tragédias históricas.

É fácil perceber a influência do olhar empedernido desta obra sobre a história , por exemplo, no fantástico fumetto de faroeste Ken Parker. É fácil também ver a presença do estilo sombrio de Breccia no noir de Sin City, de Frank Miller. A sombra desse quadrinho argentino paira por toda parte. Aos poucos, Oesterheld vai fazendo Mort deixar de ser um personagem coerente, com contexto e verossimilhança. Ele passa a transformá-lo numa ideia útil para se mover no mundo, acumular experiências de subjugação, relacionar eventos e efeitos. Breccia o acompanha nessa piração, criando contrastes dramáticos no nanquim, vazando os quadros, entortando as feições dos seus torturados personagens.

A publicação de Mort Cinder no Brasil deixa nosso repertório menos órfão. A edição da Figura recupera páginas originais e recolhe o melhor de todas as edições estrangeiras já publicadas. Breccia resplandece límpido, em toda sua escuridão. Oesterheld, cujo corpo nunca foi encontrado, descansa um pouco melhor.

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