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De volta ao lar: minha trajetória afetiva com o Homem-Aranha

O novo filme do herói é um convite a lembrar da história por trás deste personagem

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“Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades”. Quem nunca ouviu a ladainha de modelo ética protestante que o velho Stan Lee aplicou nas HQs do Homem-Aranha nos anos 1960 e se tornou, provavelmente, o mais “filosófico” bordão dos quadrinhos?

“Com grandes poderes…”

 

O Homem-Aranha é uma consciência culpada, retrato da nossa dificuldade em lidar com a potência inerente a todos nós, o primeiro super-herói neurótico. Provavelmente o filósofo Nietzsche, que ensinava que deveríamos deixar de lado o legado cristão de culpa e autopunição (para justamente assumir esta potência inerente) o acharia ridículo.

Porém, como bem devemos saber, nós estamos muito mais perto do Homem-Aranha do que de Nietzsche. E nós gostamos do herói justamente por ser um neurótico. A chegada de um novo filme do aracnídeo em julho leva à necessidade de se pensar afetivamente sobre nosso apego ao “amigão da vizinhança”.

A premissa original do Homem-Aranha é hoje um tanto batida, mas ajuda a contextualizar. Quando criou o herói para a revista “Amazing Fantasy” em 1962, Stan Lee, o hiperativo editor que tinha a missão de salvar (e talvez revolucionar) a Marvel, possuía uma noção clara em sua cabeça: “adolescentes consomem nossos produtos”.

Lee compreendia que havia uma identificação profunda dos leitores adolescentes (baby boomers) dos anos 1960 com o mundo incandescente e fantasioso dos super-heróis. Na época, a adolescência, tal qual a compreendemos hoje, não existia. A geração da Segunda Guerra passou diretamente da infância para a vida adulta, e assim foram todos antes deles.

A Guerra provocou uma convalescência profunda na estruturação das famílias, e a nova geração, quando cresceu, pôde se identificar como um tipo intermediário com necessidades específicas. O jovem teve autonomia pela primeira vez. Podia ter suas ideias e opiniões. Ter um mercado de consumo voltado para eles. Cultuar algo como rock ‘n’ roll e os quadrinhos.

Lee sabia que os super-heróis, por mais “mainstream” que fossem, ainda significavam um tipo de subversão para esses adolescentes. A pergunta que ele fez, para dar o pulo do gato (ou o salto da aranha), foi: “e se tivesse um super-herói que fosse um adolescente”?

De fato, essa simples mudança de chave provocou um abalo nos fundamentos gerais da projeção-identificação do jovem leitor com seus personagens. As características do Homem-Aranha apareceram em avalanche: um cara jovem e quebrado, tendo que vender fotos fraudulentas de si próprio para tocar a vida, criado por uma velha tia doente, odiado por seu editor e perseguido pela mídia. Fora isso, tem de enfrentar bullying no colégio. Posteriormente, até sua namorada morre nas mãos de um vilão psicopático.

Pode parecer pouco para os dias de hoje, em que super-heróis são pensados para serem mais complexos e transtornados do que personagens de Virginia Wolf, mas para 1962 aquilo se alinhava à revolução do comportamento (junto com movimentos pelos direitos civis, pelas liberdades femininas, pelo fim da guerra do Vietnã).

O aracnídeo foi cocriado justamente pelo desenhista Steve Ditko, que já fazia para a Marvel histórias de ficção-científica carregadas de personagens transtornados pelos dilemas humanos trazidos pelas tecnologias do futuro. Ditko era um homem sóbrio, muito tímido, e um tanto obscuro. Seu traço elegante e esguio, com lindas ilustrações de sobrevoos e acrobacias, tornou-se base para representar o Homem-Aranha até hoje. Foi ele quem criou o inconfundível uniforme azul e vermelho.

O Aranha de Ditko

 

Uma pequena historiografia pessoal do Aranha
Com tudo isso, podemos ver que o Homem-Aranha é, desde o princípio, um herói à sua maneira realista. Sem que tenha de marcar os vilões com ferro em brasa para que isso seja percebido. Meu afeto pelo personagem não é por acaso. Foi uma história do Homem-Aranha que li, na pacata cidade de Buriti Alegre (GO), no final dos anos 1980, que me abriu os olhos ao mundo dos super-heróis. Eu era uma criança, leitor de “Mônica”, e me deparei com a clássica “Nada Pode Deter o Fanático”, de 1982 (de Roger Stern e um jovem Romita Jr.) que colocava o Aranha contra o vilão dos X-Men.


A história é uma boa porta de entrada porque coloca os elementos primais do mundo dos super-heróis à flor da pele. Eu não sabia quem era Homem-Aranha (e muito menos o Fanático), mas percebi ali uma condição arquetípica: havia um colosso de força bruta e obtusidade psicológica enfrentando um herói bondoso, mais frágil e lânguido, mas ao mesmo tempo sarcástico, impetuoso, que procurava soluções criativas para subverter suas desvantagens. Foi um momento-chave, transformador, numa varanda modesta, quando achei, num cesto, a edição em formatinho (sem capa) que continha essa história. Como se uma aranha radioativa tivesse me picado.

McFarlane

Avançando aos anos 1990 (no Brasil), li muito Homem-Aranha e as histórias, mesmo que não fossem exuberantes como na época de Ditko e Romita, mantinham o espírito da coisa. O roteirista David Michelinie (que criou o Venom) produziu arcos ordinários, porém memoráveis, no exato tom de respeito à tradição de Lee-Ditko e a modernização do personagem, com desenhistas que marcaram época, como Todd McFarlane e Erik Larsen. Afinal, como esquecer os desenhos alucinados, cheios de rebuscamento (hoje datado) em hachuras e desdobramentos barrocos, de McFarlane?

Já Larsen ficou bons anos no Homem-Aranha (sendo substituído já por um sub-Larsen, Mark Bagley), e me vem à cabeça a história simples do “Retorno do Sexteto Sinistro”, quando Dr. Octopus reúne novamente o grupo de supervilões planejando traí-los “a posteriori”. O Aranha acaba se aliando ao Homem-Areia, provocando uma tensão naquilo que representa realmente a “vilania” dos vilões.

Impossível ignorar, também, o tom sombrio, paranoico, cheio de vozes em primeira pessoa no recordatórios, do lendário “A Última Caçada de Kraven”, uma das melhores histórias de J.M. DeMatteis (e é impagável o Kraven “bocudo” ilustrado por Mike Zeck)? Aqui, seguindo a tendência pós-Cavaleiro das Trevas (a história era originalmente pensada para o Batman, mas foi negada pela DC), heróis e vilões refletem sobre a morte por meio de drogas e estranhos psiquismos.

Kraven por Michael Zack

 

“A Criança Dentro de Nós”

Muita coisa saiu nesta época. DeMatteis também escreveu “A Criança por Dentro de Nós”, uma completa teia (sic) de relações complexas familiares entre os Osborn e Peter Parker. Não dá pra esquecer a cara do netinho dos Osborn, nas linhas duras de Sal Buscema, espancando um boneco do Homem-Aranha. Até coisas vulgares, sagas tronchas como a do clone ou “Carnificina Total”, me entreteram, nutrindo um afeto nunca superado por este emblemático super-herói.

“Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades”. E fazer um novo filme do Homem-Aranha é uma enorme responsabilidade. A bola está com Jon Watts e Tom Holland (e talvez, a contragosto, Robert Downey Jr.). Espero que não estraguem as emoções e ansiedades deste velho coração adolescente.

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